tag:blogger.com,1999:blog-14630996200230740732024-03-13T13:55:40.970-07:00ESSES CONTOS - Julio PeclyNESSE ESPAÇO DEMOCRATICO, VOCÊ PODE COLOCAR SEUS CONTOS E POESIAS. NENHUM TEMA É TABU. SEJAM BEM VINDOS. VOCÊ PODE ENVIAR SEU CONTO PARA O SEGUINTE E-MAIL:blogdoscontos@gmail.com E ELE SERÁ POSTADO.BLOG DOS CONTOShttp://www.blogger.com/profile/05321083505017170549noreply@blogger.comBlogger91125truetag:blogger.com,1999:blog-1463099620023074073.post-28520647170488337902014-12-09T17:44:00.003-08:002014-12-09T17:48:02.086-08:00 ROSE E O ANJO DA SALVAÇÃO
O sol raiava no meio do mar jogando os primeiros raios de sol sobre as areias da orla do Rio de Janeiro, o Morro do Chapéu Mangueira fica de frente para o mar, uma vista privilegiada do mais caro pedaço da cidade, um lugar onde gente acorda cedo para dar começo no batente, a vida na madrugada também é agitada com o subir e descer de gente da comunidade e de fora dela, motos acelerando morro a cima para o mercado de toxico que mesmo sobre os olhares de uma pacificação policial continua se alimentando do vicio. Afinal como disse certo policial militar uma vez, onde vamos acomodar os viciados, admitindo ele que o estado não tem competência para administrar a peste maligna da sociedade deste começo de século.
Os mesmos raios de sol entravam pela janela da casa do pedreiro Gladison que tinha os olhos fitos para Bíblia Sagrada aberta no salmo vinte e três. Em uma das mãos uma bíblia na outra um revolver calibre trinta e oito, carregado. Ele caminha recitando o famoso versículo que muitos evangélicos nem precisam abrir o livro dos livros para ler.
- O senhor é meu pastor e nada me faltará. Deita-me faz por verdes pastos; guia-me mansamente a águas tranquilas...
Caminha em direção à cama de sua filha, Rose. Uma adolescente de dezesseis anos na flor da tenra idade se veste como uma adolescente do morro, um top cobrindo os seios que lhe brotam no tórax ainda firmes e duros, um short jeans curtíssimo que lhe cobre o restante do corpo. Pequena e morena, vaidosa e frágil, corpo bonito de menina moça, olhos negros, rosto de anjo. Seu pai caminha em direção o corpo da filha estirada na cama.
- Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, pois tu estais comigo, tua vara e teu cajado me consolam...
Ele chega perto bastante e olha a filha que em sono profundo tema maquiagem do rosto borrado. Na face do pai rola uma lagrima, ele estende a arma em direção ao corpo da linda jovem que nos braços de morfeu não poderá se defender, ele hesita e ato continuo puxa o gatilho, o disparo ecoa pelo morro como se a morte anunciasse sua presença.
Na madrugada daquele dia em um beco da comunidade Rose fazia sexo oral em um homem negro que encostado no muro sentia prazer a cada movimento dela, um frenético vai e vem com a cabeça que o homem fica desnorteado com os olhos fechados pedindo para que ela não pare, ela para e continua o exercício com as mãos até que ele explode em um jorro fatal do prazer e delírio. Eles se ajeitam, o homem pega uma pistola que ficou escondida durante o ato em um caco de telha de amianto, junto com a arma um saco de plástico com papelotes com cocaína dentro, pega dois e entrega a menina que coloca dentro dos seios e sai satisfeita pelo beco, anda poucos metros e entra em uma birosca ainda aberto naquela hora.
- Seu Manoel o banheiro ta aberto?
- Vê se não demora muito porque tem muito policia hoje, toda hora passa um pra pegar alguém de bobeira no bagulho.
- Tá tranquilo seu Manuel, pode deixar.
Ela já havia consumido uma quantidade grande de papelotes no começo da noite, e na madrugada continuou vendendo o corpo tantas vezes com vários parceiros de diferentes idades que sentia o corpo dolorido, mas continuava para poder sustentar o vicio, estes homens tinha como recompensa algum prazer carnal. Era mais uma vez que com um canudo de papel cheirava o pó sobre uma superfície de mármore colocada pelo dono do bar para a freguesia que entrava e sai do minúsculo banheiro sem ser importunada. O odor do vaso cheio de fezes que chagava a borda, não incomodava, o cheiro da urina que vinha do ralo ao lado da pia, subia sem ter por onde se dissipar transformando o ambiente inconcebível para quem não estivesse sobre efeito de um entorpecente ou varias deles. Ela cheirou os últimos grãos e passou o dedo sobre o mármore para ter certeza que tinha consumido toda a droga, de repente sentiu o coração acelerar bruscamente e uma pontada na cabeça como se fosse começo de uma dor, mas como do nada veio do nada parou, foi muito rápido chegou a apoiar a mão na parede do cubículo por alguns instantes para se recuperar, arrumou a roupa apertada e ajeitou o corpo, abriu a porta apenas uma fresta para ver se tudo estava limpeza, se não tinha nenhum policial por perto, confirmado ela sai do banheiro dos viciados e deixa dois reais para o dono, pedágio cobrado para quem quer dar um teco escondido. Rose estava satisfeita, mas ainda não estava conformada, podia ainda fazer mais um trabalho rápido com alguém e comprar mais um pó de cinco, Flavinho o traficante que ela prometeu fazer um boquete em troca de um papel foi generoso, deu dois, sinal que ele gostou da caprichada que ela deu. Na esquina da rua principal ela começou a se sentir muito estranha, um gosto estranho na boca uma pontada na cabeça como no banheiro, uma dor no peito agonizante, uma ânsia de vomito, uma tonteira inesperada e La se apoia em uma parede e na calçada, com os olhos revirando ela tenta achar alguém caminhando na rua mas não acha, apoia as costa na mesma parede e um liquido branco começa a sair pela boca, overdose. Os olhos parecem que vão sair de orbita e a língua começa a inchar, ela esta fora de si, começa a se debater não consegue se controlar quando todo corpo estremece, não a dor e sim um torpor na alma.
Algo acontece e Rose sente o corpo parar e na sua frente uma luz forte surge e dentro dela um homem vestido de branco, ele caminha em sua direção e ajoelha frente a ela, ele é negro.
- Quem é você?
Ele olha com ternura para ela, coloca a mão em sua cabeça e fecha os olhos, neste instante Rose sente um alivio no corpo cansado de tanto sexo, pelos poros da palma da mão começa a sair um liquido branco limpando seu organismo e aos poucos ela vai se sentindo melhor, a dor de cabeça passa, o coração volta a ter batidas constantes e normaliza, ela olha com mais atenção aquele rosto que se apresenta a sua frente, contempla um olhar firme e profundo da criatura que lhe socorre.
- Porque?
- Sou Mizael, sinto no seu coração que você não quer mais esta vida, que as correntes do vicio prende sua alma em um desespero profundo enquanto seu espírito se debate pedindo libertação, fui mandado para lhe salvar, sua vida agora pode caminhar sem precisar desta corrente maligna que corroí sua vida que ainda se encontra na puberdade da caminhada, muito embora sua caminhada vá continuar em outro lugar, e não aqui neste miserável lugar.
- Você é tão bonito, não sinto mais vontade de comprar um pó, parece que eu estou mais leve, mais feliz, sinto meu corpo mais forte.
- Fui escolhido para preparar você para sua última jornada, Rose sua vida muda daqui em diante, minha tarefa foi cumprida vai para casa seu pai a espera.
Ela olha a luz envolta de Mizael que aos poucos o cobre até desaparecer por completo, ela levanta-se aos poucos, olha para mãos que estão cheias de liquido branco, olha em volta e encontra uma bica a poucos metros dela, caminha coloca o joelho no chão liga a bica e deixa a água lavar o liquido primeiro de uma mão depois da outra. Caminha alguns instantes e passa pela boca de fumo, olha pessoas comprando e outras vendendo, alguém a reconhece e chama seu nome, ela calmamente vira as costas e vai para casa.
Gladison olhava pela janela a madrugada quente e estrelada com uma lua cheia e clara brilhando no céu. Já perdeu a conta de quantas noites deixara sua casa e saia a esmo pela favela para procurar Rose, não tinha mais lágrimas no rosto para chorar o destino da filha, a mãe dela abandonou tudo para viver com outro homem, ele ficou com a missão tortuosa de ver a filha se perder na vida do trafico, a viziança contava para ele as vezes que ela se prostituia para consumir, para ele um nordestino trabalhador pedreiro de profissão, era humilhante esta situação, a dois anos ela começou a se descontrolar, e suas noites viraram um verdadeiro inferno, ele não tem mais controle sobre Rose nem ela sobre o vicio e há alguns meses nasceu uma vontade no seu coração, acabar com esta tortura, terminar com o sofrimento que faz dele o otário da comunidade, o pai babaca que tem a filha puta, a piada dos botecos e comercio local, um homem sem respeito e sem moral. Naquela noite depois que ela saiu inventando que iria na vizinha pedir algo, só para fugir do pai, ele começou a arrumar a mochila de um jeito diferente, sempre fazia isso para ir trabalhar no dia seguinte, mas hoje ele tirou todas as ferramentas que ocupavam espaço e colocou roupas e o dinheiro que sobrou dos roubos da filha para comprar na boca um pó. Abriu a bíblia e começou pedir perdão a Deus.
Ele viu Rose subindo as escadarias, saiu da janela e pegou a bíblia mais uma vez, era a derradeira, abriu em salmos e começou a ler. Rose entrou e olhou o pai, seu olhar era meigo.
- Ainda acordado meu pai?
- Nunca mais dormi você sabe.
- Pode deixar isso acaba a partir de hoje pai.
- Sim minha filha acaba.
Rose deu um beijo na testa do pai que não se moveu, caminhou até a cama e deixou o corpo cair, antes de pegar no sono ela pensava como fez o pai sofrer e chegou a chorar baixinho, pegou no sono, o dia clareava e o sol despontaria no mar, Gladison lia o salmo vinte três, quando o dia amanhecer vai sair pela ultima vez do morro para voltar para sua cidade natal, sem filha, sem esposa e com a honra lavada.
Paulo Silva<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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Estive à conversa com o teu verdugo.
Um homem pulcro, amável.
Disse-me que, por ser eu,
podia escolher o modo de partires.
Os esquimós, explicou, quando ficam velhos
Perdem-se pelos caminhos
para que o urso os coma.
Outros preferem terapia intensiva,
médicos correndo ao redor, tubos, oxigénio
e inclusive um pároco aos pés da cama
fazendo sinais de hospedeira de bordo.
"É inevitável?", perguntei.
"Não devia ter vindo até aqui com essa chuva",
Respondeu-me.
Depois falou do ciclo dos homens, dos
aniversários, da dialéctica estéril do futebol, da infância
e os seus estrondos imensos cheirando a pneus.
"No entanto", disse sorrindo,
"as ambulâncias acabam devorando tudo".
Então assinei os papéis
e perguntei-lhe quando aconteceria...
Agora!, disse. Agora
tenho nos braços o teu vasilhame regressável.
E decido não chorar,
não fazer barulho,
para que lá no alto
possas achar
a mão erguida do teu falcoeiro.
Fabián Casas
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Erva daninha, nunca teve primavera.
Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta.
Pés no chão, nunca teve bicicleta.
Já Hugo, não nasceu, estreou.
Pele branquinha, nunca teve inverno.
Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha.
Vítor virou ladrão, Hugo salafrário.
Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário.
Um usava capuz, o outro, gravata.
Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata.
Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio.
Um não tinha amigo: parceiro.
O outro, tinha sócio.
Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia,
enquanto Hugo fazia pose pra revista.
O da pólvora apodrece penitente, o da caneta
enriquece impunemente.
A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente.
Sérgio Vaz<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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Não chegaram a usar palavras como “especial”, “diferente” ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de “um deserto de almas”, para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.
II
Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
III
Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.
Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
IV
Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
V
Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.
Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como “relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
Caio Fernando Abreu
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- Abre você. Deve ser aquele seu amigo doido. Ele é o único que bate assim no portão dos outros.
O amigo maluco que ela se referia era o Marcio, um gordinho que não parava quieto e quando queria mostrar algo para os amigos, ficava numa excitação tamanha que só acabava quando ele conseguia finalmente mostrar alguma novidade para os amigos.
Fulo da vida levantei e fui abrir o portão.
- Caramba cara, que que tu quer?
-Caraca cara! Minha mãe comprou pra mim. Ela me deu. O compacto dele.
Ele estava tão excitado que não estava conseguindo falar direito.
- Minha mãe comprou o compacto do Michael Jackson.
Ai toda a excitação dele passou para mim.
- Caraca cara, vamos la ouvir. Tua mãe já chegou do trabalho?
- Hoje ela chega mais tarde.
- Mãe, vou na casa do Marcio. Depois eu volto.
Fomos correndo para a casa dele. Entramos de qualquer maneira e ele foi logo colocando o disco na radio vitrola. Mal começou a tocar, a gente começou a gritar.
- Caraca, muito maneiro.
Gritamos e pulamos durante toda a musica, tentávamos acompanhar a musica em Inglês e levávamos muito bem no imbromation. Quando Vincent Price começou a falar. A gente quase teve um treco. Colocamos outra vez a musica, e depois outra e mais outra e mais outras. Só paramos de ouvir o disco quando os vizinhos reclamaram, dizendo que não aguentavam mais ouvir a mesma musica. Depois ficamos conversando sobre a musica, sobre Michael Jackson. Ficamos sem ouvir a musica por umas meia hora e depois colocamos de novo. Só paramos de ouvir quando a mãe do Marcio chegou, desligou a vitrola e deu uns tapas nele, por causa dos vizinhos fofoqueiros e me mandou embora dizendo que ia conversar com minha mãe depois.
Quando a musica terminou abri os olhos. Infelizmente estava em 2013, onde nada mais é novidade, a internet torna tudo rápido e fácil demais. E eu que achava na minha infância que Michael Jackson era imortal, não era verdade. Michael Jackson não era imortal.
Julio Pecly
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caminho em vossos passos, tão floridos,
deixaram seus perfumes coloridos
em vossa vida e em vosso amor maduro.
Felicidade é um ar mais doce e puro,
e o tempo vos encontra já sofridos...
Os filhos são criados e vividos
e os netos já caminham no futuro!
E agora, ao som do tilintar das taças,
felizes neste festival de graças
que vosso lar recebe do Senhor,
Só peço a Deus que afaste a nuvem triste,
conserve em vós a luz que em vós existe,
e seja amor, completamente amor!
Eno Teodoro Wanke
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Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:
— Não pode ser!
— Isto é um roubo!
— Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
— Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
— É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na questão:
— Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?
— Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
— Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
— Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
— E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
— E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
— Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
— Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.
E continuamos a nossa jornada para Bagdá.
Malba Tahan
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Que vive sem sorte, sem terra e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto o meu pranto me ponho a chorar
Ninguém te oferece um feliz lenitivo
És rude e cativo, não tens liberdade.
A roça é teu mundo e também tua escola.
Teu braço é a mola que move a cidade
De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça de enxada na mão
Julgando que Deus é um pai vingativo,
Não vês o motivo da tua opressão
Tu pensas, amigo, que a vida que levas
De dores e trevas debaixo da cruz
E as crides constantes, quais sinas e espadas
São penas mandadas por nosso Jesus
Tu és nesta vida o fiel penitente
Um pobre inocente no banco do réu.
Caboclo não guarda contigo esta crença
A tua sentença não parte do céu.
O mestre divino que é sábio profundo
Não faz neste mundo teu fardo infeliz
As tuas desgraças com tua desordem
Não nascem das ordens do eterno juiz
A lua se apaga sem ter empecilho,
O sol do seu brilho jamais te negou
Porém os ingratos, com ódio e com guerra,
Tomaram-te a terra que Deus te entregou
De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça , de enxada na mão
Caboclo roceiro, sem lar , sem abrigo,
Tu és meu amigo, tu és meu irmão.
Patativa do Assaré
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Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!
CASIMIRO DE ABREU<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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— E você, com esse ordenado micho de servente, tem lá poder pra fazer nosso filho ministro? — duvidou a mãe.
— Então, só porque meu ordenado é micho ele não pode ser ministro? A Rádio Nacional deu que Abraão Lincoln trabalhava de cortar lenha no mato, e chegou a presidente dos Estados Unidos.
— Isso foi nos Estados Unidos.
— E dai? Nem eu estou querendo tanto pra ele. Só quero uma de
Ministro.
— Tonzinho, deixa isso pra lá.
— Pra começar, a gente convida o Ministro pra padrinho dele.
— O Ministro não vai aceitar.
— Não vai por quê? Trabalho no gabinete há dois anos.
— Ele é muito importante, filho.
— Por isso mesmo. Com padrinho importante, o garotinho começa logo a ser importante.
— O Ministro é tão ocupado, você mesmo diz. Vê lá se tem tempo pra batizar filho de pobre.
— Pois sim. Ele me trata com toda a consideração, de igual pra igual. Hoje mesmo eu faço o convite.
Fez. O Ministro não pôde comparecer, mas enviou representante. Era quase a mesma coisa. Na hora de dizer o nome do menino, o pai não vacilou; disse bem sonoro:
— Ministro.
— Como? — estranhou o padre.
— Ministro, sim senhor.
A mulher ia atalhar: "Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente
combinou?" mas era tarde.
No cartório, também estranharam:
— Ministro por quê?
— Porque eu escolhi. Acho lindo.
— Não é nome próprio.
— Pois eu cá acho muito próprio. Não tem ai uma família chamada
Ministério, aliás com pessoas distintas, médicos, dentistas, etc.?
— Tem.
— Pois então. Meu filho é Ministro, só isso. Ministro Alves da Silva,
futuro cidadão útil à Pátria. Tem alguma coisa demais?
O garoto registrou-se. Cresceu. Na escola, a principio achavam-lhe
graça no nome. Parecia apelido. Depois, o costume. Há nomes mais
estranhos. Ministro não era o primeiro da classe, também não foi dos
últimos.
Já moço, o leque das opções não se abriu para ele. Entre o oficio sem brilho e o andar-térreo da burocracia, acabou sendo, como o pai, servente de repartição. Promovido a continuo.
— Eu não disse? —- festejou o pai. — Começou a subir.
O máximo que subiu foi trabalhar no gabinete do Ministro.
— Ministro, o Sr. Ministro está chamando.
— Ministro, já providenciou o cafezinho do Sr. Ministro?
— Sabe quem telefonou pra você, Ministro? A senhora do Sr. Ministro. Diz que você prometeu ir lá consertar umas goteiras e esqueceu.
— Ministro! Roncando na hora do expediente?!
Começaram os equívocos:
— Telefonema para o Ministro.
— Qual? O Ministro ou o Sr. Ministro?
— Este Ministro é um cretino! Me fez esperar uma hora nesta poltrona!
— Perdão, Deputado, o senhor está ofendendo o Sr. Ministro.
— Eu ? Eu ? Estou me referindo a esse animal, esse...
Até que se apurasse que o animal era Ministro, o contínuo — que
confusão!
O Ministro de Estado, ciente da confusão, recomendou ao assessor:
— Faça esse homem trocar de nome.
— Impossível, Sr, Ministro. É o seu titulo de honra.
— Então suma com ele da minha vista.
Mandaram-no para uma vaga repartição de vago departamento. Queixou-se ao pai, aposentado, que isso de se chamar Ministro não conduz a grandes coisas e pode até atrasar a vida.
— Ora, meu filho, hoje no bueiro, amanha no Pão de Açúcar. E você não tem de que se queixar. Num momento em que tanta gente importante sua a camisa pra ser Ministro, e fica olhando pro céu pra ver se baixa um signo do astral, você já é, você sempre foi Ministro, de nascença! de direito! E não depende de governo nenhum pra continuar a ser, até a morte!
Abraçaram-se, chorando.
Carlos Drummond de Andrade
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Tinha gente que torcia para você ser menino.
Outros torciam para você ser menina.
Torciam para você puxar a beleza da mãe, o bom humor do pai.
Estavam torcendo para você nascer perfeito.
Daí continuaram torcendo. Torceram pelo seu primeiro
sorriso, pela primeira palavra, pelo primeiro passo.
Seu primeiro dia de escola foi a maior torcida. E o
primeiro gol, então?
E de tanto torcerem por você, você aprendeu a torcer.
Começou a torcer para ganhar muitos presentes e flagrar
Papai Noel.
Torcia o nariz para o quiabo e a escarola.
Mas torcia por hambúrguer e refrigerante. Começou a
torcer até para um time. Provavelmente, nesse dia, você
descobriu que tem gente que torce diferente de você.
Seus pais torciam para você comer de boca fechada, tomar
banho, escovar os dentes, estudar inglês e piano. Eles
só estavam torcendo para você ser uma pessoa bacana.
Seus amigos torciam para você usar brinco, cabular aula,
falar palavrão.
Eles também estavam torcendo para você
ser bacana. Nessas horas, você só torcia para não ter
nascido. E por não saber pelo que você torcia, torcia
torcido. Torceu para seus irmãos se ferrarem, torceu
para o mundo explodir.
E quando os hormônios começaram a torcer, torceu pelo
primeiro beijo, pelo primeiro amasso. Depois começou a
torcer pela sua liberdade. Torcia para viajar com a
turma, ficar até tarde na rua. Sua mãe só torcia para
você chegar vivo em casa. Passou a torcer o nariz para
as roupas da sua irmã, para as idéias dos professores e
para qualquer opinião dos seus pais.
Todo mundo queria era torcer o seu pescoço. Foi quando até você começou a torcer pelo seu futuro.
Torceu para ser médico, músico,advogado.
Na dúvida, torceu para ser físico nuclear ou jogador de futebol.
Seus pais torciam para passar logo essa fase.
No dia do vestibular, uma grande torcida se formou.
Pais, avós, vizinhos, namoradas e todos os santos
torceram por você.
Na faculdade, então, era torcida pra todo lado. Para a
direita, esquerda, contra a corrupção, a fome na Albânia
e o preço da coxinha na cantina.
E, de torcida em torcida, um dia teve um torcicolo de
tanto olhar para ela. Primeiro, torceu para ela não ter
outro. Torceu para ela não te achar muito baixo, muito
alto, muito gordo, muito magro
Descobriu que ela torcia igual a você. E de repente vocês estavam torcendo para não acordar desse sonho.
Torceram para ganhar a geladeira, o microondas e a grana para a viagem de lua-de-mel.
E daí pra frente você entendeu que a vida é uma grande
torcida. Porque, mesmo antes do seu filho nascer, já
tinha muita gente torcendo por ele.
Mesmo com toda essa torcida, pode ser que você ainda não
tenha conquistado algumas coisas. Mas muita gente ainda
torce por você!"
Carlos Drumond de Andrade<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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que se atropela
sob esta carne
que transparece.
Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.
Tua alma foge
como cabelos,
cunhas, humores,
palavras ditas
que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.
Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.
Nem mesmo cresce
pois permanece
fora do tempo
que não a mede,
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.
De pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem.
A MULHER SENTADA
Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos?
Nuvens sobre seus cabelos.
(A visita espera na sala;
a notícia, no telefone;
a morte cresce na hora;
a primavera, além da janela).
Mulher sentada. Tranqüila
na sala, como se voasse.
IMITAÇÃO DAS ÁGUAS
De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
na paria cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,
e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
A MULHER E A CASA
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
QUESTÃO DE PONTUAÇÃO
Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);
viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):
o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.
João Cabral de Melo Neto<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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O doutor Wagner conseguiu reprimir-se. Era meritório. Depois disse:
- O seu pedido é um pouco desconcertante. Que eu saiba, é a primeira vez que um mosteiro tibetano faz a encomenda de um calculador eletrônico. Não quero ser curioso, mas estava longe de pensar que semelhante instituição pudesse necessitar desta máquina. Posso perguntar-lhe em que deseja utilizá-la?
O Lama ajeitou as dobras de sua túnica de seda e pousou sobre a secretária a régua de calcular com a qual acabava de fazer conversões libra-dólar.
- Naturalmente. O seu calculador eletrônico tipo 5 pode fazer, segundo diz o catálogo, todas as operações matemáticas até 10 decimais. No entanto, o que me interessa são letras, não números. Pedir-lhe-ei portanto que modifique o circuito de saída de forma que imprima letras em vez de colunas de números.
- Não compreendo muito bem…
- Desde que a nossa instituição foi fundada, há mais de três séculos, que nos consagramos a um determinado trabalho. É um trabalho que pode parecer-lhe estranho e peço-lhe que me escute com a maior largueza de espírito.
- De acordo.
- É simples. Tentamos organizar a lista de todos os nomes possíveis de Deus.
- Perdão?
O lama continuou imperturbavelmente:
- Temos excelentes motivos para crer que todos esses nomes incluem quando muito nove letras do nosso alfabeto.
- E ocuparam-se disso durante três séculos?
- Sim. Tínhamos calculado que precisaríamos de quinze mil anos para terminar o trabalho.
O doutor deu um assobio de vencido, e disse um pouco atordoado:
- O.K., agora compreendo o porque deseja alugar uma das nossas máquinas. Mas qual é o objetivo da operação?
Durante uma fração de segundo o lama hesitou e Wagner receou ter ofendido aquele estranho cliente que acabara de fazer a viagem Lassa-Nova Iorque com uma régua de calcular e o catálogo da companhia de contadores eletrônicos no bolso de sua túnica cor de açafrão.
- Chame a isto um ritual se quiser – disse o lama – mas é uma da bases fundamentais da nossa religião. Os nomes de Ser Supremo, Deus, Júpiter, Jeová, Alá etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens. Certas considerações filosóficas demasiado complexas para que as possa expor agora, deram-nos certeza de que, entre todas as perguntas e possíveis combinações das letras, se encontram os verdadeiros nomes de Deus. Ora, o nosso objetivo é descobri-los e escrevê-los todos.
- Já compreendo: Começam por A.A.A.A.A.A.A.A.A., e acabarão por chegar a Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.
- Simplesmente utilizamos o nosso alfabeto. Evidentemente que lhe há de ser fácil modificar a máquina de escrever elétrica, de forma que ela utilize nosso alfabeto. Mas o problema mais importante será o de preparar os círculos especiais de forma que eliminem antecipadamente as combinações inúteis. Por exemplo, nenhuma das letras deve aparecer mais de três vezes sucessivamente.
- Três? Quer dizer duas.
- Não. Três. Mas a explicação completa exigiria muito tempo, mesmo que o senhor compreendesse a nossa língua.
Wagner disse precipitadamente:
- Claro, claro. Continue por favor.
- Ser-lhe-á fácil adaptar o calculador automático em função desse objetivo. Com um plano bem elaborado, uma máquina desse gênero pode trocar as letras umas após outras e imprimir um resultado. Desta forma, concluiu calmamente o lama, aquilo que nos levaria ainda quinze milênios estará terminado em cem dias.
O Doutor Wagner sentia que ia perdendo o sentido das realidades. Através das janelas do edifício, os ruídos e as luzes de Nova Iorque perdiam a intensidade. Sentia-se transportado a um mundo diferente. Lá longe, no seu longínquo asilo montanhoso, geração após geração, os monges tibetanos há trezentos anos elaboravam sua lista de nomes desprovidos de sentido… Não havia então limite para a loucura dos homens?
Mas o Doutor Wagner não devia deixar transparecer os seus pensamentos. O cliente tem sempre razão…
E respondeu:
- Não duvido que possam modificar a máquina do tipo 5, de forma a imprimir listas desse gênero. A instalação e a conservação é que mais me inquietam. Aliás, não será fácil enviá-la para o Tibete.
- Nós trataremos disso. As peças separadas têm dimensões suficientemente pequenas para serem transportadas por avião. De resto, foi esse o motivo porque escolhemos a máquina. Envie as peças para a Índia, nós nos encarregamos do resto.
- Deseja contratar dois dos nossos engenheiros?
- Sim, para montarem e vigiarem a máquina durante esses cem dias.
- Vou mandar instruções à direção de pessoal – disse Wagner enquanto escrevia na agenda. – Mas restam duas questões a resolver…
Antes que tivesse podido terminar a frase, o lama tirou do bolso uma delgada folha de papel:
- Esta é a situação de minha conta no Banco Asiático.
- Muito obrigado. Está muito bem… Mas, se me permite, a segunda questão é de tal maneira elementar que hesito em mencioná-la. Acontece muitas vezes esquecermos qualquer coisa evidente… Têm uma fonte de energia elétrica?
- Temos um gerador Diesel elétrico de 50 KW de potência, 110 volts. Foi instalado há cinco anos e funciona bem. Facilita-nos a vida no convento. Compramo-lo sobretudo para acionar os moinhos de orações.
- Ah! Sim, evidentemente, eu devia ter pensado nisso…
Do parapeito a vista era vertiginosa, mas habituamo-nos a tudo. Tinha decorrido três meses e George Hanley já não se importava com os seiscentos metros em vertical que separavam o mosteiro do quadriculado dos campos da planície. Apoiado sobre as pedras que o vento arredondara, o engenheiro contemplava com olhar triste as montanhas longínquas de que ignorava o nome. “A operação nome de Deus”, como batizara um humorista da Companhia, era sem dúvida a pior tarefa de louco em que jamais participara.
Semana após semana, a máquina tipo 5, modificada, cobrira milhares de folhetos de uma incrível algaravia. Paciente e inexorável, o calculador reunira as letras do alfabeto tibetano em todas as combinações possíveis, esgotando série após série. Os monges recortavam certas palavras à saída da máquina de escrever elétrica e colavam-nas com devoção em enormes registros. Dentro de uma semana acabariam.
Hanley ignorava quais os cálculos obscuros que os levavam à conclusão de que não deviam estudar conjuntos de dez, vinte, cem mil letras, e nem pretendia sabê-lo. nos seus pesadelos sonhava às vezes que o grande lama decidiria bruscamente complicar um pouco mais a operação e que o trabalho continuaria até o ano 2060. Aliás aquele estranho homenzinho parecia perfeitamente capaz de o fazer.
A pesada porta de madeira estalou. Chuck vinha ter com ele no terraço. Chuck fumava, como de costume, um charuto: tornara-se popular com os lamas distribuindo-lhes havanas. Aqueles tipos poderiam ser completamente amalucados – pensou Hanley – mas não eram puritanos. As freqüentes expedições a aldeia não tinham sido desprovidas de interesse…
- Ouve, George – disse Chuck – vamos ter aborrecimentos.
- A máquina escangalhou-se?
- Não.
Chuck sentou-se sobre o parapeito. Era espantoso, pois habitualmente receava ter vertigens:
- Acabo de descobrir o objetivo da operação.
- Mas já o sabíamos!
- Sabíamos o que os monges queriam fazer, mas não sabíamos por quê.
- Bah! São uns loucos…
- Escuta, George, o velho acaba de explicar-me. Eles crêem que assim que tenham escrito todos aqueles nomes ( e segundo pensam são cerca de nove bilhões), o objetivo divino será atingido. A raça humana terá realizado a tarefa para que foi criada.
- E então? Esperam que nos suicidemos?
- Inútil. Quando a lista estiver terminada, Deus intervirá e será o fim.
- Quando terminarmos, será então o fim do mundo?
Chuck teve um risinho nervoso:
- Foi o que eu disse ao velho. Ele olhou-me de forma estranha, como um professor olha para um aluno particularmente estúpido, e disse-me: “Oh, não será assim tão insignificante!…”
George refletiu por um instante.
-É um tipo que visivelmente tem idéias largas, mas, mesmo assim, que importância tem isso? Nós já sabíamos que eram uns loucos.
- Sim. Mas não vês o que pode acontecer? Se a lista ficar pronta e se as trombetas do anjo Gabriel, versão tibetana, não soarem, eles podem decidir que é por nossa culpa. Afinal de contas, era a nossa máquina que eles utilizavam. Não gosto disso…
- Percebo… – disse lentamente Jorge – mas eu já vi tanta coisa! – Quando era garoto na Luisiana, apareceu um pregador que anunciou o fim do mundo para o domingo seguinte. Houve centenas de tipos que acreditaram nele. Alguns mesmo chegaram a vender suas casas. Mas ninguém se endureceu no domingo seguinte. As pessoas pensaram que ele apenas errara um pouco os cálculos, e muitas delas ainda acreditam.
- Caso não te tenhas apercebido faço-te notar que não estamos na Luisiana. Estamos ambos sozinhos, no meio de centenas de monges. Adoro-os, mas preferia estar longe quando o velho lama aperceber-se que a operação falhou.
- Há uma solução. Uma pequenina sabotagem inofensiva. O avião chega dentro de uma semana e a máquina termina o trabalho dentro de quatro dias à razão de 24 horas por dia. Basta-nos começar a reparar qualquer coisa durante dois ou três dias. Se calcularmos bem, poderemos estar lá embaixo, no aeroporto, quando o último nome sair da máquina.
Sete dias mais tarde, enquanto os pequenos pôneis das montanhas desciam o caminho em espiral, Hanley disse:
- Sinto um pouco de remorsos. Não fujo por medo, mas porque tenho pena. Não gostaria de ver a cara daqueles pobres homens quando a máquina parar.
- Na minha opinião – disse Chuck – eles desconfiaram que fugimos, e não se incomodaram. Agora já sabem até que ponto a máquina é automática, e que não precisa de vigilância. E supõem que não haverá nenhuma depois.
George voltou-se para trás e olhou.
Os edifícios do mosteiro apareciam em silhueta escura sobre o poente. De vez em quando brilhavam pequeninas luzes sob a massa sombria das muralhas, como as vigias de um navio singrando no mar. Lâmpadas elétricas colocadas sobre o circuito da máquina n.º 5.
Que aconteceria ao calculador elétrico? – pensou George. – Na fúria e desapontamento iriam os monges destruí-lo? Ou então recomeçariam tudo?
Como de ainda lá estivesse, via o que naquele momento se passava na montanha atrás das muralhas. O grande lama e os seus assistentes examinavam as folhas, enquanto alguns noviços recortavam os nomes barrocos e os colavam no enorme caderno. e tudo aquilo era feito em religioso silêncio. Só se ouviam as teclas da máquina, batendo no papel como se fossem chuva miúda. O próprio calculador, que combinava milhares de letras por segundo, estava completamente silencioso…
A voz de Chuck interrompeu o seu devaneio:
- Lá está ele! Que grande alegria que dá!
Semelhante a uma minúscula cruz prateada, o velho avião de transportes D.C.3 acabava de pousar lá embaixo no pequeno aeródromo improvisado. Aquela visão dava vontade de beber um grande copo de uísque gelado. Chuck começou a cantar, mas depressa se calou. As montanhas não o encorajavam.
George consultou o relógio.
- Estaremos lá dentro de uma hora – disse. E acrescentou: – Pensas que o cálculo já terminou?
Chuck não respondeu e George levantou a cabeça. Viu o rosto de Chuck muito branco, voltado para o céu.
- Olha – murmurou Chuck.
George, por sua vez, levantou os olhos.
Pela última vez, por cima deles, na paz das alturas, uma a uma as estrelas começavam a extinguir-se…
Arthur C. Clarke
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Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
Hilda Hilst
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*
Como assim?!?!?! Não! Não! Só pode ser brincadeira. Se Elvis que era cara comum, um sujeito como outro qualquer, há quem brade a plenos pulmões que ele não morreu! Porque aquele que talvez seja o único genuinamente imortal do globo morreria?
Os deuses da literatura assim que são entronados na ABL são condecorados com o nobre e honroso título de “Imortais”. Status que todos sabemos ser meramente simbólico, fictício, mas em se tratando do nosso pra lá de centenário arquiteto, isto é um fato, é verídico.
“Oscar Niemeyer morreu”. Chupa essa manga!!!!
Entre numa tendinha, por exemplo. Num lugar publico qualquer onde o povão fervilhe e pergunte a qualquer um sobre a idade daquele que edificou Brasília, e não se surpreenda se uma ou algumas pessoas responderem sem titubear, com firmeza e imprecisão. “110 ou 112 anos”.
É provável que as especulações ganhem números ascendentes. “que nada, ele já passou disso! deve estar com quase 120, se não for mais!”. “que 120! ele deve estar beirando os 145”.
A verdade é que ninguém confirmaria essa idade, mas também tenho certeza que ninguém duvidaria.
Nós brasileiros, num contexto geral nos habituamos, nos adaptamos a ininterrupta e longeva marcha existencial que o arquiteto imprimiu no subconsciente da nação, das pessoas que em algum momento do cotidiano perguntam despretensiosa e corriqueiramente sobre Oscar Niemeyer, como ele está, qual sua atual idade... Perguntas comuns e corriqueiras que pululam nos mais remotos cantos do nosso Brasilzão, como quem pergunta pelo placar de uma partida de futebol.
Todos, mesmo sabendo que a imortalidade é fruto da ficção, mesmo cientes dessa impossibilidade, lá no fundo acreditamos na imortalidade de Niemeyer. Essa possibilidade foi construída sem questionamentos, sem o peso desconcertante que as coisas extraordinárias causam. Esse fato foi penetrando e se fixando na cultura nacional de tal forma que ninguém parou para analisa o tamanho dessa aberração, simplesmente aceitaram essa condição de vida eterna.
Ansiamos sem perceber por informações. Sejam numa nota de jornal, num noticiário televisivo, na internet ou até mesmo através de um amigo de trabalho, de um parente ou vizinho; algo ou alguém que nos sacie a sede de informação, que nos diga algo sobre o nosso imorredouro projetista.
Quando os comentários não circulam, quando a estiagem de informações é longa, uma angustia, um inexplicável vazio nos acomete e esse peso estranho só desaparece quando as notícias informam que o último representante do clã dos “Macleod” soprou mais uma chama.
Morre fulano, empacota sicrano, bate as botas beltrano... Mas o Oscar tá lá, firme. Ignorando ou ignorado pela morte, rompendo anos, apagando velinhas. Nessa marcha, de ano em ano, de década em década ele atravessou as fases, varou a 3ª idade, desdenhou da velhice, tornou-se ancião e sem ser detido conquistou a imortalidade.
É verdade que ele tem andado um tanto quanto debilitado. As estadias nos hospitais tem se tornado frequente, mas e daí? Quem nunca se hospitalizou? Quem nunca passou por sucessivos exames? Momentos ruins são comuns em qualquer idade, mas daí morrer é muito diferente, é inconcebível. É sem dúvidas uma das maiores brincadeiras que a nação brasileira já sofreu.
“Oscar Niemeyer morreu!”. Chupa essa manga!!!!
*
Pequena pausa para refletir e analisar o texto.
O voo já se aproximava do seu destino, o aeroporto do Rio já inundava as vistas, do outro lado era possível vislumbrar a nave Niteroiense. O MAC era imponente e tornava as terras de Araribóia diferente, privilegiada.
É isso!...
*
Os dedos prosseguiam em seu balé literário.
Abduzido talvez! Convocado para projetar naves espaciais modernas, mais sofisticadas para os “manos” de outros orbes ou quem sabe tenha ido buscar inspirações em outros planetas para no futuro nos presentear com construções mais brilhantes, mais extraordinárias, mais curvilíneas.
*
No desembarque, guardei meus pertences com proposital lentidão, afim de que pudesse percorrer com os olhos a estirpe dos sujeitos que proclamaram aquela aberração.
Eram dois Bolivianos de meia idade, cabelos grisalhos, trajados com ternos escuros, bem alinhados. Aparentavam ser empresários. Por de traz, acompanhando seus passos eu sacudia a cabeça em negação e resmungava mentalmente comigo mesmo “ Como podem falar uma bobagem dessas?”
Assim que pus os pés do lado de fora do avião, um objeto grande que pairava no ar atraiu minha atenção, fez com que minha face se volvesse para o alto em sua direção. Olhei ao derredor e as pessoas seguiam tranquilas, em profunda alienação ao objeto que me petrificara.
No interior do flutuante, através de uma espécie de vitral, similar a uma escotilha, um homem idoso acenava com a mão trêmula em minha direção. Atordoado e pasmo, com o coração a tamborilar cheguei a pensar em alucinação, pois somente eu enxergava aquilo.
O idoso abriu a “escotilha”, deixou cair algo no solo. A nave partiu célere num movimento vertical e desapareceu nas nuvens como num acender ou apagar de lâmpada.
Obvio que fui verificar de que se tratava. Depois de alguns passos, agachei e recolhi do chão os dois instrumentos, caminhei para o saguão do aeroporto, sentei-me, religuei o laptop para finalizar o texto enquanto avaliava o compasso e o escalímetro que acabara de pegar.
Enquanto a máquina iniciava fui cumprimentado por um antigo vizinho que passou acompanhando uma bela e madura mulher. Abraçou-me efusivo e indagou “Está chegando ou partindo Dr Ernesto?” retribuí o carinho e informei que esta chegando. Ambos partiram embalados por uma conversa agradável e finalmente pude concluir o texto.
*
Está efetivamente comprovado “Oscar Niemeyer não morreu e ponto final”
*
- Quem é o sujeito? A mulher perguntou ao meu vizinho sobre mim.
- Dr. Ernesto. Duvidoso médico psiquiatra. Respondeu de pronto enquanto prosseguiam, e acrescentou. “Dizem que ele é metido nesse negócio de ufologia”.
Marco Antonio Rodrigues
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Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.
— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.
O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.
Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.
Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:
— Olhe o Serafim Costa!
A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:
— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.
E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.
Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!
Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.
E, assim, obtive a resposta.
Lêdo Ivo<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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“Obsequio providenciar remessa 1 ou 2 macacos”.
Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:
“Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”.
Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe:
– Professor, chegou sua encomenda. Aqui esta o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial.
E acrescentou:
– É macaco que não acaba mais!
Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “1 ou 2 macacos”, transmitira “1002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que seiscentos macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:
“Pelo amor Santa Maria Virgem suspenda remessa restante”.
Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva:
– O que será que o professor pretende com tanto macaco?
E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. A noite, porém, o agente da estação veio desentocá-la:
– Professor, pelo amor de Deus, vem dar um jeito naquilo.
O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:
– Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa.
– Para minha casa? Você está maluco?
O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:
– Macacos me mordam!
– Macaco, olha o teu rabo.
A noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas gradas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.
– Mandar de volta por conta da prefeitura?
– A prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.
– O professor muito menos.
– Já estão famintos, não sei o que fazer.
– Matar? Mas isso seria uma carnificina!
– Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato...
Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em panico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada. A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola 7. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.
Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências. Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-la pela janela.
Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus:
“Seguiu resto encomenda”.
Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.
Fernando Sabino<div class="blogger-post-footer"><script src="http://scripts.widgethost.com/pax/counter.js?counter=ctr-nczxcgfbca"></script>
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Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.
No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá — O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
Dá-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.
Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.
Depois que os dois livro eu li,
Fiquei me sintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.
Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabô a leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.
Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
— Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece munta parma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.
Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.
Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciença guverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.
Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.
Patativa do Assaré
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Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu Peito.
E traí e fui traído.
e duvidei, impacientemente, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).
Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.
Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.
Manuel António Pina
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“Quem é o seu melhor amigo?”, Marcos perguntou.
“Você?”
“Quem livra a sua cara de situações embaraçosas, resgata à meia-noite quando o carro pifa, dorme com você em hospitais, paga a sua fiança, se for necessário, vira o seu fiador, seu guarda-costas, seu pára-raio.”
“Você, você, você.”
“Me conhece, quem é o seu amigo mais fiel?”, insistia Marcos.
“Você.”
“O mais contraditório?”
“Você”
“O mais doido, insatisfeito, incoerente?”
“Você”
“E o mais sedutor?”
“Você. Disparado.” Chega o café e a conta. Marcos oferece pagar. E narra: “Não sou sedutor ortodoxo convicto, nem tenho o dogma como ideal de vida. Passei a praticar depois que a ex me largou. É um comportamento dúbio: querer me vingar, sair com o maior número de mulheres, e ao mesmo tempo sofrer de escassez amorosa. Nasceram rancores, depois de eu ter sido largado por duas mulheres que eu amo. Amava. Aquelas… Agora, procuro em cada mulher um novo atalho, que me tire desse estado.”
“Que estado?”
“De carência induzida. Procuro uma mulher que me faça esquecer. Como não encontro, testo, e me comparam a um galinha. Só existe uma pessoa que pode me salvar.”
“Quem?”
“A tua mulher.”
“A Lúcia? O que tem a Lúcia?”
“Tudo.”
“Tudo o quê?”
“Tenho pensado nela. Eu queria ter algo com ela.”
“Com a Lúcia?!”
“Você é meu amigo, não fique ofendido.”
“Ter o quê?”
“Uma relação.”
“De amor?”
“Sexual. Eu queria ter um caso com a sua mulher.”
Olharam o garçom passar o cartão e retirar o boleto. Olharam a fumaça do café. Como se nela, um futuro possível.
“Eu queria ir pra cama com…”
“Tá, tá, não precisa repetir. E será a única pessoa que pode te tirar do estado de carência?”
“Ah, você concorda com ele”, disse então Rodrigo.
“Cala a boca! Estou chocado.”
“Comigo?”, perguntou Marcos.
“Com a Lúcia. Não imaginava que ela tinha este poder.”
“De despertar desejos? De curar? Não me leve a mal.”
Ele olhou para Rodrigo, que bebericava o seu carioca.
“O que foi?”, perguntou Rodrigo.
“Você ouviu o que ouvi?”
“Lógico.”
“E você não vai falar nada?”
“O que eu posso fazer?”
“Me ajude a esganá-lo!”
“Mas é o seu melhor amigo. Se não rolar sinceridade entre amigos, não é amizade. E, ora, a Lúcia é um mulherão. Dos três, você é o mais sortudo”, disse Rodrigo.
Era o pacto. Dos três, ele era o único casado. E vivia desdenhando a mulher, Lúcia. Reclamava do seu temperamento, seus temperos, suas tendências, suas crenças. Os amigos Marcos e Rodrigo chegaram antes e combinaram. Porque são os seus melhores amigos. Resolveram provocar e demonstrar interesse em Lúcia, para que o amigo parasse de invejar aquela vida de solitários desquitados quarentões amargurados que, acredita, é mais inspiradora do que a sua de casado.
Rodrigo retomou: “Lúcia sempre foi a melhor e é ainda a mulher mais deslumbrante da cidade. Você não sabe o que ela provoca com aquele sorriso? Ela é interessada em tudo, conversa, faz perguntas, fala de assuntos sem o menor constrangimento, tem humor, uns dentes lindos, sabe se vestir com discrição, sabe como andar, os olhos mel que, quando bate sol, ficam verdes, fora aqueles braços com pelinhos loiros, ela é maluquinha…” “Tá, tá, tá!”
“É uma coisa, mesmo!”, concluiu Marcos.
“Não fala assim!
“Melhores amigos falam tudo.”
Ele se levantou tonto. Nunca imaginara que Marcos comunicasse uma declaração com proposta tão indecente.
“Nem por um milhão de dólares!”, ele disse e saiu fora.
Os amigos enfim riram da provocação:
“Também, não é a Dennie Moore”.
“Nem você o Robert Redford”.Ele dirigiu a noite toda pela cidade. O celular tocava, ele via, era Lúcia, não atendia. Guiou por todas as ruas da infância e adolescência. Depois, cruzou viadutos com nomes de militares. Passou por floriculturas e joalherias. Até voltar tarde para casa. Bem tarde. De mãos vazias. Entrou na ponta dos pés, como se um ladrão invadisse uma casa desconhecida.
Lúcia dormia. Que lindo. Olhou para a mulher. Encanto. Ela é deslumbrante mesmo. Lembrou-se das afinidades. Tomou um banho sorrindo. Uma coisa. E se enfiou na cama sem acordá-la. Então, ao invés de abraçá-la com toda a força, virou-se para o lado e começou a tremer de medo. Pânico. Uma mulher daquela, ele não conseguirá segurar, logo o primeiro que usar as palavras certas a levará, os amigos, o chefe, o professor de meditação, um garçom do Ritz, do Spot, do Habib’s, um cineasta pernambucano, o Rodrigo Santoro, o Tato Malzoni, o Quincy Jones! Eu sou um nada e me casei com a mulher mais charmosa, atraente e discreta da cidade, e nem reparava mais em tanto brilho no olhar, nem nos pelinhos loiros, nem no humor, nos dentes, ela se tornara comum, Lúcia, a patroa, a rotina, o estorvo, o entrave de uma vida sexual variada e dinâmica, e não a divindade que inspira poesia em todos os cantos.
Ele se levantou da cama. Olhou para os lados. O pânico se tornou incontrolável, terror. Suava. Falta de ar. Você não a ama mais. E ela o largará logo, porque é muita areia para o seu… Sem acordá-la, abriu as gavetas e começou a fazer as malas. Deixarei o caminho livre, musa! Quando escutou a voz meiga de Lúcia.
“Môr? Que tá fazendo?”
“Desculpe. É inevitável. Não adianta me impedir. Cedo ou tarde…”
Marcelo Rubens Paiva
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— Muita gente, não se pode nem andar direito, muito menos escolher bem as compras.
Aproveitou o tempo para, em segredo, alimentar o seu incrível sonho de quase-consumo. Finalmente, partiu para o tal supermercado, o maior e mais completo da América Latina, segundo a propaganda luxuosa e extremamente estimulante, distribuída apenas para um público-alvo de grande poder aquisitivo. Tinha conseguido o prospecto na casa do Dr. Charles Enrico Gomyd, pelo nome, já se vê, autoridade governamental ou algum manda-chuva de multinacional.
Ao entrar, sem esconder sua disposição, escolheu um carrinho com corrente e amarrou-o a um outro. Ia começar pela seção de eletro-doméstico, mas foi praticamente impedido por um vendedor, tipo relações públicas, da área da informática: o Senhor não gostaria de conhecer nossas promoções especiais?
Ora, parecia até combinado. Aceitou a "provocação" e começou escolhendo não apenas um, mas dois computadores. Claro, tomou como base a sólida opinião do Seu Gomyd: "Quem tem apenas um, não tem nenhum; a solução ideal é ter um de mesa e outro para viajar".
Vai daí que foi logo apanhando um note book, aliás um super note book (celeron 400, 64 Mb, HD de 6.4 Gb, CD-Rom 40x etc etc) e um PC "de mesa" com todos os periféricos possíveis e imagináveis "mesa de ping-pong, meu camarada", pensou e riu para seus botões). Quase com impaciência fingiu ouvir e entender a longa e desnecessária explicação decorada do vendedor. Mesmo assim ficou maravilhado com a rapidez com que ele fazia aparecer uma série infinita de lindos desenhos, inclusive um sobre futebol de verdade, com o Flamengo vencendo sempre. Gostou também de saber que o computador tinha uma agenda de endereços: Puta agenda, malandro!
Livre do vendedor vitorioso (ou quase-vitorioso), conforme seu desejo inicial, partiu para a seção de eletro-doméstico, na ala dos importados: Caramba, isto aqui é mesmo um assombro!
Escolheu um equipamento japonês, talvez o menor de todos, mas, certamente, o mais completo e o mais caro. Pudera, nunca vira tanto lazer num só aparelho: tv a cores, DVD, vídeo laser, tape deck, gravador de rolo...
O volume quase que lota um dos carrinhos, mal cabendo um mix incrível, recém-lançado, que deixava todos os outros liquidificadores no chinelo. Nas virtudes e, também, no preço.
Quase sem parar, ao passar pelos discos, escolheu, entre outros — até para o seu espanto de velho pagodeiro — um CD com o trio Pavarotti—Carreras-Domingo e um recém-lançado conjunto dos principais momentos de Maria Callas:
— Imagino estes três, mais a Dona Maria Callas formando um grupo de puxadores de samba enredo lá na Escola, queria ver a cara do Walter Alfaiate mesmo com aquele vozeirão!
Era apenas um começo, mas algumas pessoas já começavam a olhá-lo com admiração.
— Este sabe o que é bom!
Sem nenhum roteiro prévio de compras, da seção de eletrodomésticos, passou para a de bebida.
— Chateau Mouton-Rotchschild 95 — Pauillac: 1.000 reais. em promoção, hum, deve ser um vinho razoável.
Ato contínuo colocou duas garrafas no segundo carro. Deu alguns passos, pensou melhor, lembrou das sangrias que fazia com o vinho Sangue da Terra (5 reais o garrafão), voltou e pegou mais três garrafas.
Na mesma prateleira, mais adiante, passou para os uísques.
— "Com menos de 21 anos, para mim não serve", lembrou a frase preferida do Dr. Charles quando servia bebida para seus amigos. Não os amigos da capoeira, também queridos, mas, segundo ele, sem "embocadura" para apreciar uma bebida mais refinada. Vinha daí, aliás, através da apresentação de Mestre Paulinho Botafogo (ou Paulinho da Jussara), sua amizade com o Doutor, mais conhecido, nas rodas de capoeira da Central e da Penha, como Gomyd Angoleiro ou, ainda, Gomyd Anestesia. Um dos poucos capoeiras com dois apelidos, ninguém sabendo explicar muito bem a origem de nenhum deles. Nem mesmo o Paulinho da Jussara, extraordinária figura humana, boêmio, filósofo, tocador de cavaco, tremendo compositor (premiado!) , professor de português nas horas vagas e, por esporte, dono de uma quitanda onde arma um senhor pagode de mesa todas as sextas ("pagode em pé é coisa de paulista almofadinha."...).
— "Este negócio de uísque "di maior de idade " é coisa mesmo de gente rica, mas tudo bem ", filosofou encerrando a divagação paralela e retomando as "compras ".
Pegou três garrafas de Royal Salute, "21 years old" e foi em frente. Ainda no corredor das bebidas, reconheceu um rum cubano (Siete Anos) que tomara certa vez com um colega de infância que só falava em comunismo. Mais duas garrafas. Talvez por associação de idéias (Cuba), das bebidas partiu para a tabacaria. Uma sala especial, temperatura especialmente controlada, onde um cubano, profundo conhecedor de "puros" e extremamente simpático (Señor Manuel) professorava sobre o assumo. Ficou alguns minutos ouvindo, atentamente, as explanações; tempo suficiente para decidir-se por duas caixas de Romeo y Julieta, tamanho Churchill, e uma caixa de Partagas, em sutil homenagem a Ernesto Che Guevara (segundo o Senõr Manuel, Che Guevara preferia esta marca). Seguiu em frente, levemente sorridente, lembrando-se dos charutos que ousava enfrentar de vez em quando: "mata-ratos da pior qualidade" !.
A rápida exposição do cubano, entretanto, teve outros méritos, pois lembrou, não apenas a importância de um bom casamento entre um bom charuto e um bom vinho, mas, também, o casamento desta dupla, com um sem-número de "appetizers" (tira-gosto, para os íntimos). Partiu, então, acelerado, para a seção de queijos, frios e iguarias afins.
— Que torresmo que nada, que guela de galinha, desta vez, teremos caviar, patê de foie gras, salmão e alguns quilos de brie, emmental, camembert, roquefort e outros "fromages". Com todo respeito à mortadela (partida a facão) e ao queijão frito lá da quitanda do Paulinho da Jussara.
Do pensamento à ação, com a ajuda do caderno de propaganda, quase lota o segundo carro com cinco latas de caviar russo, queijos franceses e vários outros produtos desconhecidos ("se estão nesta área só podem ser coisa fina").
Analisando, especialmente seu segundo carro, atentou para uma falha: como servir as bebidas e as iguarias?
A esta altura, orgulhoso, já estava trocando idéias avançadas sobre a arte de se viver bem com alguns outros clientes. Nenhum, entretanto, com os carrinhos tão invejavelmente cheios como os dele. A um destes, da maneira mais descontraída que pode teatralizar, perguntou onde ficava a seção de copos e pratos.
— Importados, é claro; quero apenas copos de cristal Riedel e louças de porcelana da China.
Conseguiu um terceiro carro para abrigar seus cristais e porcelanas; conseguiu, também, que a gerência colocasse um auxiliar para ajudá-lo com os três carros. Estava chegando ao fim, faltava apenas mais uma coisa, um pequeno detalhe, mas que não abriria mão, em hipótese alguma: queria fazer seu banquete, ao lado da mulherzinha amada (era aniversário dela, seria uma surpresa), pisando num belo tapete persa. Não foi fácil escolher, muito menos colocá-los — é, comprou um grande e um pequeno sobre os três carrinhos. Como escolher quando a vontade é comprar todos? Acabou optando por um hadzistan para o seu quarto e um pequeno mossul para o banheiro ("por que não"?).
Sem pressa, escolheu a caixa com a maior fila.
Na fila foi virando celebridade: "Lindas compras, hem"? "Quem pode, pode, né"!
Ao perceber que estava chegando a sua vez, com insuspeitável charme, pediu que olhassem seus carros, pois tinha que dar um pulo no banheiro. Generosamente, como se fosse um adiantamento de gorjeta, deu ao garoto que lhe ajudava uma nota de cinco reais, exatamente a metade do que levava no bolso. Passou "batido" pelo banheiro indo direto para o ponto do ônibus que o levaria até a Central do Brasil; de lá, com mais duas conduções, finalmente, chegaria ao seu quartinho humilde, num conjunto habitacional do extinto BNH, na Baixada Fluminense.
Quartinho humilde, distante léguas e léguas do imponente e recém-inaugurado supermercado, mas, diga-se, a bem da justiça e da verdade, cheio de sonhos malandríssimos de consumo.
No caminho de casa, na venda do compadre Paulinho, saindo da rotina (normalmente levava 150 gramas) pendurou 400 gramas de mortadela — "afinal, o presunto leva a fama, mas todo mundo gosta mesmo é de mortadela" — e um xarope de groselha. Passando pelo cemitério tratou de descolar, também, uma linda flor para sua namorada aniversariante.
Que adorou a rosa, mas ficou furiosa por não ter participado da fascinante visita ao supermercado.
— "Já pensou — completou meio zangada, meio sonhando — aposentar o leite de rosas e lotar mais dois carrinhos com altos perfumes (começou a ler uma lista apanhada não se sabe onde): bulgari, cacharel, chanel, cartier, christian dior, givenchy, guy laroche"...?!
André Luiz Lacé Lopes
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- Onde está Deus?
Eles ficam parados e não dizem nada. Com os braços estendidos acima da cabeça, vibra intencionalmente a vara no ar:
- Onde está Deus? Repetiu o clérigo em tom rigoroso.
Um duplo susto. Os meninos não esperam por mais. Saem correndo da igreja e só param em casa quando dentro do guarda-roupa. Dona Tereza, que já se preocupava com a demora dos filhos, os encontrou trêmulos:
- O que aconteceu?
- Mãe, agora a gente tá encrencado! Deus sumiu, e o padre acha que a culpa é nossa!
Marco Pezão
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Que não existia no humilde casebre onde vivia com a família na favela próxima ao local de trabalho de seu pai. Naquela tarde era dia de trabalho escolar. João tinha 13 anos e foi incumbido a descrever a rotina de seu pai no trabalho profissional. Logo naquele dia de confusão. A pequena capela estava toda enfeitada. João não entendia o porquê de tantas flores, e flores amarradas num negócio redondo que ele nunca tinha visto, tantos véus e até bexigas de festa de criança. O falecido era pagodeiro e devoto de São Jorge. “Ô santozinho arrêtado”, comenta o coveiro. Os amigos estavam ou vestidos de branco ou de vermelho. A família, já citada. E a amante... a amante estava com um vestido dourado e com dois cachorros dessas raças de madame pintados de rosa no colo. “A danada queria mesmo se destacar, ‘mostra’ que estava ali para pedir os direitos dela”, ri João. O morto pagodeiro era dado com um santo pela família que até então não sabia da existência da amante com quem tinha uma vida paralela, três filhos, dois cachorros e quatro periquitos. Como o coveiro sabia de tantos detalhes, nem ele soube responder, disse que foi o que ouviu falar no meio da gritaria que tomou o velório. “Ai foi assim...” todos estavam orando, foi logo após a reza do padre que mais parecia um ator mexicano dessas novelas que passam no canal 11. Era moreno, alto e tinha um bigode esquisito. Claro que João só se deu conta disso anos depois quando seu pai comprou a primeira televisão em preto e branco da família. O padre estava no meio do pai nosso quando a mulher dourada entrou com os caninos que não paravam de latir. Era bonita, alta, um rosto esticado que escondia a idade. “Oh, não sei não, pela cara eu dava uns 30, pelo resto... ah pelo resto... o resto era de 20 de lamber os ‘bêiço’, e olha que eu só tinha 13, hein.” Loira de cabelos enrolados até a cintura, pernas grossas despidas no vestido curto e, dourado, e com um pandeiro... “nossa senhora”, que explicava a pulada de cerca. “Toda amante é carnuda e loura, né?! Ainda cometo um pecado desse”. A esposa era de um tipo certinha. Estava com um miúdo no colo que era esculpido o pai. Na cara que tinha uns 40. Era loira também, mas não dessas que dão água na boca e sim dessas que enchem os olhos de lágrimas só de encostar, parecia uma santa a orar pelo marido ali esticado. Até que sua atenção foi tomada pelo rosa dos cães e em seguida pelo dourado dos paetês. Aquilo não era roupa de velório, nem de gente decente. E apesar das bolas e das roupas dos amigos em homenagem a devoção ao santo, aquilo não era uma festa. Era um momento de tristeza. E também de gargalhadas assim que os outros pagodeiros da banda avistaram a amante e relembraram a história que acompanharam do danado nos últimos dez anos. A amante foi logo se aproximando do caixão. Parou ao lado da viúva oficial e segurou em seu ombro. Até então, pareciam amigas. Tirou os óculos de abelha, moda da época e limpou discretamente o borrão da maquiagem estragado pelas lágrimas. “Eu sinto muito à sua dor, mas preciso lhe contar...” e as lágrimas da santa oficial cessaram sem acreditar no que ouvia. A mais sincera confissão da traição sórdida da boca da amante de um homem que julgava digno, que lhe dera um herdeiro com muito custo e anos de tratamento e não três vindos com muita facilidade. Toda a história veio à tona, de uma só vez, sem querer saber se feriria a imagem do homem, sem querer saber se abalaria a falsa paz da família, sem querer saber se importunaria os ouvidos dos presentes. E daí começou a briga. Palavrões não foram proferidos, “briga santa, né?!”, mas a gritaria tomou conta e João não conseguiu encaixar todo o enredo, apenas o que descreve o texto. Bexigas estouraram e os aramados de flores foram jogados ao chão por impulso do desespero da viúva. “Que meu marido se debulhe em lágrimas se essa história for verdade”. Inacreditável. “O morto tá chorando”, gritou alguém. Todos pararam e encheram o entorno do caixão. Foi preciso força nos braços da viúva para afastar toda aquela gente e ver de perto o milagre. - Papai, morto chora?! - insistiu João. - Fica quieto menino! - Meu marido tá vivo! - Ei, o marido é meu! E isso é impossível, ele morreu nos meus braços. Segundo a história do coveiro, que viu com os próprios olhos “que a terra há de ‘cumê’”, o morto chorou. Mas não um choro de muita água. Uma lágrima, apenas. Uma pequena gota que fez do velório um episódio, para muitos assustados, de terror, para os mais descrentes em fantasmas, de comédia. Para João que não duvidava de nada depois que sentiu o mar pela primeira vez, o episódio seria um prato cheio para a professora de português que o enviou para aquela tarefa que, de inicialmente chata, tornou-se finalmente emocionante.••.
Marianna Kiss
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Sacolinha
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