Sejam Bem Vindos - Leiam e comentem os contos - Sua opnião é muito importante.

domingo, 23 de setembro de 2012

Sonho de quase-consumo

Deixou passar, deliberadamente, a semana de inauguração. — Muita gente, não se pode nem andar direito, muito menos escolher bem as compras. Aproveitou o tempo para, em segredo, alimentar o seu incrível sonho de quase-consumo. Finalmente, partiu para o tal supermercado, o maior e mais completo da América Latina, segundo a propaganda luxuosa e extremamente estimulante, distribuída apenas para um público-alvo de grande poder aquisitivo. Tinha conseguido o prospecto na casa do Dr. Charles Enrico Gomyd, pelo nome, já se vê, autoridade governamental ou algum manda-chuva de multinacional. Ao entrar, sem esconder sua disposição, escolheu um carrinho com corrente e amarrou-o a um outro. Ia começar pela seção de eletro-doméstico, mas foi praticamente impedido por um vendedor, tipo relações públicas, da área da informática: o Senhor não gostaria de conhecer nossas promoções especiais? Ora, parecia até combinado. Aceitou a "provocação" e começou escolhendo não apenas um, mas dois computadores. Claro, tomou como base a sólida opinião do Seu Gomyd: "Quem tem apenas um, não tem nenhum; a solução ideal é ter um de mesa e outro para viajar". Vai daí que foi logo apanhando um note book, aliás um super note book (celeron 400, 64 Mb, HD de 6.4 Gb, CD-Rom 40x etc etc) e um PC "de mesa" com todos os periféricos possíveis e imagináveis "mesa de ping-pong, meu camarada", pensou e riu para seus botões). Quase com impaciência fingiu ouvir e entender a longa e desnecessária explicação decorada do vendedor. Mesmo assim ficou maravilhado com a rapidez com que ele fazia aparecer uma série infinita de lindos desenhos, inclusive um sobre futebol de verdade, com o Flamengo vencendo sempre. Gostou também de saber que o computador tinha uma agenda de endereços: Puta agenda, malandro! Livre do vendedor vitorioso (ou quase-vitorioso), conforme seu desejo inicial, partiu para a seção de eletro-doméstico, na ala dos importados: Caramba, isto aqui é mesmo um assombro! Escolheu um equipamento japonês, talvez o menor de todos, mas, certamente, o mais completo e o mais caro. Pudera, nunca vira tanto lazer num só aparelho: tv a cores, DVD, vídeo laser, tape deck, gravador de rolo... O volume quase que lota um dos carrinhos, mal cabendo um mix incrível, recém-lançado, que deixava todos os outros liquidificadores no chinelo. Nas virtudes e, também, no preço. Quase sem parar, ao passar pelos discos, escolheu, entre outros — até para o seu espanto de velho pagodeiro — um CD com o trio Pavarotti—Carreras-Domingo e um recém-lançado conjunto dos principais momentos de Maria Callas: — Imagino estes três, mais a Dona Maria Callas formando um grupo de puxadores de samba enredo lá na Escola, queria ver a cara do Walter Alfaiate mesmo com aquele vozeirão! Era apenas um começo, mas algumas pessoas já começavam a olhá-lo com admiração. — Este sabe o que é bom! Sem nenhum roteiro prévio de compras, da seção de eletrodomésticos, passou para a de bebida. — Chateau Mouton-Rotchschild 95 — Pauillac: 1.000 reais. em promoção, hum, deve ser um vinho razoável. Ato contínuo colocou duas garrafas no segundo carro. Deu alguns passos, pensou melhor, lembrou das sangrias que fazia com o vinho Sangue da Terra (5 reais o garrafão), voltou e pegou mais três garrafas. Na mesma prateleira, mais adiante, passou para os uísques. — "Com menos de 21 anos, para mim não serve", lembrou a frase preferida do Dr. Charles quando servia bebida para seus amigos. Não os amigos da capoeira, também queridos, mas, segundo ele, sem "embocadura" para apreciar uma bebida mais refinada. Vinha daí, aliás, através da apresentação de Mestre Paulinho Botafogo (ou Paulinho da Jussara), sua amizade com o Doutor, mais conhecido, nas rodas de capoeira da Central e da Penha, como Gomyd Angoleiro ou, ainda, Gomyd Anestesia. Um dos poucos capoeiras com dois apelidos, ninguém sabendo explicar muito bem a origem de nenhum deles. Nem mesmo o Paulinho da Jussara, extraordinária figura humana, boêmio, filósofo, tocador de cavaco, tremendo compositor (premiado!) , professor de português nas horas vagas e, por esporte, dono de uma quitanda onde arma um senhor pagode de mesa todas as sextas ("pagode em pé é coisa de paulista almofadinha."...). — "Este negócio de uísque "di maior de idade " é coisa mesmo de gente rica, mas tudo bem ", filosofou encerrando a divagação paralela e retomando as "compras ". Pegou três garrafas de Royal Salute, "21 years old" e foi em frente. Ainda no corredor das bebidas, reconheceu um rum cubano (Siete Anos) que tomara certa vez com um colega de infância que só falava em comunismo. Mais duas garrafas. Talvez por associação de idéias (Cuba), das bebidas partiu para a tabacaria. Uma sala especial, temperatura especialmente controlada, onde um cubano, profundo conhecedor de "puros" e extremamente simpático (Señor Manuel) professorava sobre o assumo. Ficou alguns minutos ouvindo, atentamente, as explanações; tempo suficiente para decidir-se por duas caixas de Romeo y Julieta, tamanho Churchill, e uma caixa de Partagas, em sutil homenagem a Ernesto Che Guevara (segundo o Senõr Manuel, Che Guevara preferia esta marca). Seguiu em frente, levemente sorridente, lembrando-se dos charutos que ousava enfrentar de vez em quando: "mata-ratos da pior qualidade" !. A rápida exposição do cubano, entretanto, teve outros méritos, pois lembrou, não apenas a importância de um bom casamento entre um bom charuto e um bom vinho, mas, também, o casamento desta dupla, com um sem-número de "appetizers" (tira-gosto, para os íntimos). Partiu, então, acelerado, para a seção de queijos, frios e iguarias afins. — Que torresmo que nada, que guela de galinha, desta vez, teremos caviar, patê de foie gras, salmão e alguns quilos de brie, emmental, camembert, roquefort e outros "fromages". Com todo respeito à mortadela (partida a facão) e ao queijão frito lá da quitanda do Paulinho da Jussara. Do pensamento à ação, com a ajuda do caderno de propaganda, quase lota o segundo carro com cinco latas de caviar russo, queijos franceses e vários outros produtos desconhecidos ("se estão nesta área só podem ser coisa fina"). Analisando, especialmente seu segundo carro, atentou para uma falha: como servir as bebidas e as iguarias? A esta altura, orgulhoso, já estava trocando idéias avançadas sobre a arte de se viver bem com alguns outros clientes. Nenhum, entretanto, com os carrinhos tão invejavelmente cheios como os dele. A um destes, da maneira mais descontraída que pode teatralizar, perguntou onde ficava a seção de copos e pratos. — Importados, é claro; quero apenas copos de cristal Riedel e louças de porcelana da China. Conseguiu um terceiro carro para abrigar seus cristais e porcelanas; conseguiu, também, que a gerência colocasse um auxiliar para ajudá-lo com os três carros. Estava chegando ao fim, faltava apenas mais uma coisa, um pequeno detalhe, mas que não abriria mão, em hipótese alguma: queria fazer seu banquete, ao lado da mulherzinha amada (era aniversário dela, seria uma surpresa), pisando num belo tapete persa. Não foi fácil escolher, muito menos colocá-los — é, comprou um grande e um pequeno sobre os três carrinhos. Como escolher quando a vontade é comprar todos? Acabou optando por um hadzistan para o seu quarto e um pequeno mossul para o banheiro ("por que não"?). Sem pressa, escolheu a caixa com a maior fila. Na fila foi virando celebridade: "Lindas compras, hem"? "Quem pode, pode, né"! Ao perceber que estava chegando a sua vez, com insuspeitável charme, pediu que olhassem seus carros, pois tinha que dar um pulo no banheiro. Generosamente, como se fosse um adiantamento de gorjeta, deu ao garoto que lhe ajudava uma nota de cinco reais, exatamente a metade do que levava no bolso. Passou "batido" pelo banheiro indo direto para o ponto do ônibus que o levaria até a Central do Brasil; de lá, com mais duas conduções, finalmente, chegaria ao seu quartinho humilde, num conjunto habitacional do extinto BNH, na Baixada Fluminense. Quartinho humilde, distante léguas e léguas do imponente e recém-inaugurado supermercado, mas, diga-se, a bem da justiça e da verdade, cheio de sonhos malandríssimos de consumo. No caminho de casa, na venda do compadre Paulinho, saindo da rotina (normalmente levava 150 gramas) pendurou 400 gramas de mortadela — "afinal, o presunto leva a fama, mas todo mundo gosta mesmo é de mortadela" — e um xarope de groselha. Passando pelo cemitério tratou de descolar, também, uma linda flor para sua namorada aniversariante. Que adorou a rosa, mas ficou furiosa por não ter participado da fascinante visita ao supermercado. — "Já pensou — completou meio zangada, meio sonhando — aposentar o leite de rosas e lotar mais dois carrinhos com altos perfumes (começou a ler uma lista apanhada não se sabe onde): bulgari, cacharel, chanel, cartier, christian dior, givenchy, guy laroche"...?! André Luiz Lacé Lopes

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Onde está Deus?

Ainda, o município de Santa Clara conserva tranqüilidade de cidade do interior. Deve ter no máximo cinco mil habitantes. Na praça, em frente à capela, os jovens se encontram. Ouvem músicas, cantam, dançam, e os amores florescem entre os casais. Adiante, a sorveteria do Gaspar. O concorrido cinema. O teatro onde companhias se instalam em temporadas. Ocupando a esquina principal, a antiga padaria do seu Manoel produz o melhor pão de milho de toda região. Sim, Santa Clara se mantém quase alheia às transformações da vida moderna. Pena que a televisão vá modificando o sotaque ali característico. Mesmo assim, mantendo a tradição, as famílias conservam hospitalidade e se reúnem para o almoço domingueiro ou festejo de dia santo. O fato é que próximo à praça, numa rua transversal, mora dona Tereza. Mãe de dois filhos, cujo marido meteu-se em negócio de caixeiro viajante e sumiu a vista de todos. Ela, senhora de trinta anos, encara as dificuldades com talento no preparo de doces e salgados. Simpática e cuidadosa consegue dar sustento a casa, e aos meninos Toninho e Agenor, de 10 e 8 anos. Verdadeiros pentelhos. Pois não há duas pequenas almas mais endiabradas. Arte praticada por adultos é obra. Se, por crianças, é travessura. E, nessa arte, a dupla é amplamente reconhecida. Choque elétrico em gatos. Rato na gaveta da mesa da professora. Sapos nas mochilas das colegas de classe. Trocas de material escolar. Sumiço de lanches. Nó em roupas penduradas nos varais. Fechaduras de portas tampadas com chicletes. As brincadeiras valem reprimendas, mas eles não se emendam. Pneus de carros esvaziados. Assentos do cinema lambuzados de graxa. Nem a batina do sacristão é poupada. Um dia apareceu cheia de açúcar e repleta de formigas. Até o vinho sagrado fora substituído por refresco. Tudo que é peraltice, Toninho e Agenor praticam. A ausência do pai é a explicação dos temperamentos arredios. Em consideração a mãe, a vizinhança é paciente. São crianças, explicam. Amanhã ou depois tomam jeito. É certo, porém, que umas boas palmadas não iam mal! Dona Tereza é incapaz de levantar a mão aos filhos e sofre. Pois qualquer caso inusitado que aconteça no vilarejo, de imediato, os culpados são eles. Mas eis que um padre austero assume a igreja local. Traz fama de exigente quanto à disciplina das ovelhas rebeldes do rebanho de Cristo. Por conselho das vizinhas, dona Tereza resolve enviar Toninho e Agenor a uma sessão. Padre Afonso é alto e forte. Tem olhos miúdos, a barba cerrada e a cara quadrada. Não ri por nada. E seu oficio é regido de forma incontestável. Sabedor das traquinagens dos guris, o severo vigário segura uma vara de marmelo defronte ao altar. Ambos chegam temerosos, e notam falta das imagens nas paredes. Não sabem que estão sendo restauradas. De feitio peculiar, a pergunta inicia o sermão. Padre Afonso encorpa a voz e brada: - Onde está Deus? Eles ficam parados e não dizem nada. Com os braços estendidos acima da cabeça, vibra intencionalmente a vara no ar: - Onde está Deus? Repetiu o clérigo em tom rigoroso. Um duplo susto. Os meninos não esperam por mais. Saem correndo da igreja e só param em casa quando dentro do guarda-roupa. Dona Tereza, que já se preocupava com a demora dos filhos, os encontrou trêmulos: - O que aconteceu? - Mãe, agora a gente tá encrencado! Deus sumiu, e o padre acha que a culpa é nossa! Marco Pezão

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Histórias de pescador, digo, de coveiro

- Papai, morto chora?O pai atônito nada respondeu, fixou o olhar na confusão e a ali ficou parado até receber a ordem do chefe para chamar a polícia. Era tarde de um domingo de julho de 1979, o tempo nublado estava tão escuro quanto as roupas da família no velório. O nome do falecido, João Severino, coveiro num cemitério do Rio de Janeiro, não lembra. Diferente do cheiro de rosas que tomava o lugar. Tão vivo em sua memória quanto a certeza de que seu pai nunca havia ouvido falar naquele paradoxo da fisiologia humana, aliás, que ninguém que conhecesse ouviu falar. Nunca. Um cheiro que não existia no sertão onde nasceu. Que não existia no humilde casebre onde vivia com a família na favela próxima ao local de trabalho de seu pai. Naquela tarde era dia de trabalho escolar. João tinha 13 anos e foi incumbido a descrever a rotina de seu pai no trabalho profissional. Logo naquele dia de confusão. A pequena capela estava toda enfeitada. João não entendia o porquê de tantas flores, e flores amarradas num negócio redondo que ele nunca tinha visto, tantos véus e até bexigas de festa de criança. O falecido era pagodeiro e devoto de São Jorge. “Ô santozinho arrêtado”, comenta o coveiro. Os amigos estavam ou vestidos de branco ou de vermelho. A família, já citada. E a amante... a amante estava com um vestido dourado e com dois cachorros dessas raças de madame pintados de rosa no colo. “A danada queria mesmo se destacar, ‘mostra’ que estava ali para pedir os direitos dela”, ri João. O morto pagodeiro era dado com um santo pela família que até então não sabia da existência da amante com quem tinha uma vida paralela, três filhos, dois cachorros e quatro periquitos. Como o coveiro sabia de tantos detalhes, nem ele soube responder, disse que foi o que ouviu falar no meio da gritaria que tomou o velório. “Ai foi assim...” todos estavam orando, foi logo após a reza do padre que mais parecia um ator mexicano dessas novelas que passam no canal 11. Era moreno, alto e tinha um bigode esquisito. Claro que João só se deu conta disso anos depois quando seu pai comprou a primeira televisão em preto e branco da família. O padre estava no meio do pai nosso quando a mulher dourada entrou com os caninos que não paravam de latir. Era bonita, alta, um rosto esticado que escondia a idade. “Oh, não sei não, pela cara eu dava uns 30, pelo resto... ah pelo resto... o resto era de 20 de lamber os ‘bêiço’, e olha que eu só tinha 13, hein.” Loira de cabelos enrolados até a cintura, pernas grossas despidas no vestido curto e, dourado, e com um pandeiro... “nossa senhora”, que explicava a pulada de cerca. “Toda amante é carnuda e loura, né?! Ainda cometo um pecado desse”. A esposa era de um tipo certinha. Estava com um miúdo no colo que era esculpido o pai. Na cara que tinha uns 40. Era loira também, mas não dessas que dão água na boca e sim dessas que enchem os olhos de lágrimas só de encostar, parecia uma santa a orar pelo marido ali esticado. Até que sua atenção foi tomada pelo rosa dos cães e em seguida pelo dourado dos paetês. Aquilo não era roupa de velório, nem de gente decente. E apesar das bolas e das roupas dos amigos em homenagem a devoção ao santo, aquilo não era uma festa. Era um momento de tristeza. E também de gargalhadas assim que os outros pagodeiros da banda avistaram a amante e relembraram a história que acompanharam do danado nos últimos dez anos. A amante foi logo se aproximando do caixão. Parou ao lado da viúva oficial e segurou em seu ombro. Até então, pareciam amigas. Tirou os óculos de abelha, moda da época e limpou discretamente o borrão da maquiagem estragado pelas lágrimas. “Eu sinto muito à sua dor, mas preciso lhe contar...” e as lágrimas da santa oficial cessaram sem acreditar no que ouvia. A mais sincera confissão da traição sórdida da boca da amante de um homem que julgava digno, que lhe dera um herdeiro com muito custo e anos de tratamento e não três vindos com muita facilidade. Toda a história veio à tona, de uma só vez, sem querer saber se feriria a imagem do homem, sem querer saber se abalaria a falsa paz da família, sem querer saber se importunaria os ouvidos dos presentes. E daí começou a briga. Palavrões não foram proferidos, “briga santa, né?!”, mas a gritaria tomou conta e João não conseguiu encaixar todo o enredo, apenas o que descreve o texto. Bexigas estouraram e os aramados de flores foram jogados ao chão por impulso do desespero da viúva. “Que meu marido se debulhe em lágrimas se essa história for verdade”. Inacreditável. “O morto tá chorando”, gritou alguém. Todos pararam e encheram o entorno do caixão. Foi preciso força nos braços da viúva para afastar toda aquela gente e ver de perto o milagre. - Papai, morto chora?! - insistiu João. - Fica quieto menino! - Meu marido tá vivo! - Ei, o marido é meu! E isso é impossível, ele morreu nos meus braços. Segundo a história do coveiro, que viu com os próprios olhos “que a terra há de ‘cumê’”, o morto chorou. Mas não um choro de muita água. Uma lágrima, apenas. Uma pequena gota que fez do velório um episódio, para muitos assustados, de terror, para os mais descrentes em fantasmas, de comédia. Para João que não duvidava de nada depois que sentiu o mar pela primeira vez, o episódio seria um prato cheio para a professora de português que o enviou para aquela tarefa que, de inicialmente chata, tornou-se finalmente emocionante.••. Marianna Kiss

domingo, 2 de setembro de 2012

MEMÓRIAS DE UM MENDIGO

Num dia qualquer do início de dezembro acordei cedo e notei minha garrafa vazia. A noite passada foi foda, o vento zunia desesperado em meus ouvidos, ainda bem que a pinga durou até eu dormir. É a maior delícia dormir sob o efeito da branquinha. Que vocês não venham me criticar, eu bebo não é por que gosto é a situação que me obriga. E agora deu pra ter manda chuva dando pauladas nas nossas cabeças, achando que nós somos sacos de lixos. Aí é que tem que beber mesmo. Esperei a multidão acabar, foi melhor assim, depois me levantei e fui na birosca do seu Jorge tomar um pingado e encher a minha garrafa. O que me chama a atenção no meio desse povo indo trabalhar, são as mulheres vestidas em trajes mil. No calor é pior ainda. Falo pior por que comigo o buraco é mais embaixo. Eu também sou ser humano e como tal também tenho desejos sexuais. Quero trepar, comer, realizar fantasias e gozar. E pra realizá-los é só por meio da masturbação, não há outro jeito. Nessa parte ainda dá pra realizar, o difícil é os meus sonhos que alimento desde que vim morar na rua. Sempre fui um sujeito muito confuso. Quando tinha meus vinte e quatro anos estava revoltado com muita coisa em minha volta. Nessa época eu lia bastante coisa sobre as revoluções, as teorias, os pensadores como: Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel e Platão. Eu não tinha com quem conversar, as pessoas que estavam em minha volta não acompanhavam o meu raciocínio. Pra ter certeza que tudo o que eu estava refletindo não era fruto do meu ser confuso, resolvi me posicionar. A primeira coisa foi me limitar a consumir determinados produtos dos Estados Unidos, e olha que argumentações não faltavam. Depois fui me fechando até acreditar na auto-gestão, e não mais pagar impostos, onde eu mesmo poderia consumir minhas próprias produções, desde meu café da manhã até a cama que acomodaria o meu sono. É claro que isso envolvia um carro também. Mas as minhas reflexões foram tão profundas que aqui estou, dormindo na rua sem pagar aluguel, sem colaborar com o pagamento da dívida externa, sem pagar imposto, sem contribuir com merda nenhuma. Quando tirei a conclusão me achei um grande idiota, pois para fazer minha própria roupa eu teria que comprar o pano, a linha de costura e uma máquina. Porra, o pano viria da industria, a linha e a máquina também, aí não dá. Lembro que cheguei a pensar até no pequeno tubo que viria enrolado a linha de costura. Vim morar na rua. Na época em que eu lia os pensadores também procurava informações atuais, pra isso eu precisava da porcaria da televisão que para assisti-la era necessário consumir energia, e era nesse momento que estavam discutindo a privatização das empresas fornecedoras de energia. Ás vezes apelava para os jornais vendidos nas bancas, mas era a mesma coisa, o dinheiro que eu pagava ao jornaleiro era dividido entre ele, o distribuidor, os editores, a gráfica e automaticamente cada um pagava suas contas com esse dinheiro. Queria arranjar um jeito de boicotar tudo, a empresa de telefonia, os artistas fabricados pela mídia, o tênis da apresentadora de televisão, a bicicleta de dezoito marchas, o carro do ano, a comida enlatada e várias coisas mais. Evitando consumir tudo isso, naturalmente eu não contribuiria com o salário daquele soldadinho de chumbo. Estava revoltado ao extremo, e pra não mandar todos tomarem no cu, resolvi morar na rua, pelo menos aqui não pago imposto nenhum, e olha que continuo atualizado. Tem uma banca de jornal ali na Ipiranga onde o jornaleiro que me considera muito, devido as minhas dissertações, deixa-me ler todas as notícias dos jornais diários. Não vou dizer que aqui é o paraíso, mas só pelo fato de eu não estar contribuindo com nada, já me realizo internamente. Agora pouco estava dando altas gargalhadas com um companheiro de rua. Felicidade em não fazer um filho que já iria nascer devendo. Já é noite. Junto meus panos, pego minha garrafa e me recolho. Sacolinha