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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

domingo, 23 de dezembro de 2012

A resposta

Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas. Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes. — Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas. O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras. Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso. Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei: — Olhe o Serafim Costa! A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto: — Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão. E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto. Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa! Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto. E, assim, obtive a resposta. Lêdo Ivo

domingo, 16 de dezembro de 2012

Macacos me mordam

Morador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu, residente em Manaus: “Obsequio providenciar remessa 1 ou 2 macacos”. Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta: “Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”. Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe: – Professor, chegou sua encomenda. Aqui esta o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial. E acrescentou: – É macaco que não acaba mais! Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “1 ou 2 macacos”, transmitira “1002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que seiscentos macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo: “Pelo amor Santa Maria Virgem suspenda remessa restante”. Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva: – O que será que o professor pretende com tanto macaco? E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. A noite, porém, o agente da estação veio desentocá-la: – Professor, pelo amor de Deus, vem dar um jeito naquilo. O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo: – Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa. – Para minha casa? Você está maluco? O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam: – Macacos me mordam! – Macaco, olha o teu rabo. A noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas gradas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz. – Mandar de volta por conta da prefeitura? – A prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos. – O professor muito menos. – Já estão famintos, não sei o que fazer. – Matar? Mas isso seria uma carnificina! – Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato... Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em panico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada. A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola 7. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite. No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia. Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências. Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-la pela janela. Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus: “Seguiu resto encomenda”. Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele. Fernando Sabino

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Aos Poetas Clássicos

Poetas niversitário, Poetas de Cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia; Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licença, Pois mesmo sem português Neste livrinho apresento O prazê e o sofrimento De um poeta camponês. Eu nasci aqui no mato, Vivi sempre a trabaiá, Neste meu pobre recato, Eu não pude estudá. No verdô de minha idade, Só tive a felicidade De dá um pequeno insaio In dois livro do iscritô, O famoso professô Filisberto de Carvaio. No premêro livro havia Belas figuras na capa, E no começo se lia: A pá — O dedo do Papa, Papa, pia, dedo, dado, Pua, o pote de melado, Dá-me o dado, a fera é má E tantas coisa bonita, Qui o meu coração parpita Quando eu pego a rescordá. Foi os livro de valô Mais maió que vi no mundo, Apenas daquele autô Li o premêro e o segundo; Mas, porém, esta leitura, Me tirô da treva escura, Mostrando o caminho certo, Bastante me protegeu; Eu juro que Jesus deu Sarvação a Filisberto. Depois que os dois livro eu li, Fiquei me sintindo bem, E ôtras coisinha aprendi Sem tê lição de ninguém. Na minha pobre linguage, A minha lira servage Canto o que minha arma sente E o meu coração incerra, As coisa de minha terra E a vida de minha gente. Poeta niversitaro, Poeta de cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia, Tarvez este meu livrinho Não vá recebê carinho, Nem lugio e nem istima, Mas garanto sê fié E não istruí papé Com poesia sem rima. Cheio de rima e sintindo Quero iscrevê meu volume, Pra não ficá parecido Com a fulô sem perfume; A poesia sem rima, Bastante me disanima E alegria não me dá; Não tem sabô a leitura, Parece uma noite iscura Sem istrela e sem luá. Se um dotô me perguntá Se o verso sem rima presta, Calado eu não vou ficá, A minha resposta é esta: — Sem a rima, a poesia Perde arguma simpatia E uma parte do primô; Não merece munta parma, É como o corpo sem arma E o coração sem amô. Meu caro amigo poeta, Qui faz poesia branca, Não me chame de pateta Por esta opinião franca. Nasci entre a natureza, Sempre adorando as beleza Das obra do Criadô, Uvindo o vento na serva E vendo no campo a reva Pintadinha de fulô. Sou um caboco rocêro, Sem letra e sem istrução; O meu verso tem o chêro Da poêra do sertão; Vivo nesta solidade Bem destante da cidade Onde a ciença guverna. Tudo meu é naturá, Não sou capaz de gostá Da poesia moderna. Dêste jeito Deus me quis E assim eu me sinto bem; Me considero feliz Sem nunca invejá quem tem Profundo conhecimento. Ou ligêro como o vento Ou divagá como a lêsma, Tudo sofre a mesma prova, Vai batê na fria cova; Esta vida é sempre a mesma. Patativa do Assaré

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

D'APRÈS D. FRANCISCO DE QUEVEDO

Também eu ceei com os doze naquela ceia em que eles comeram e beberam o décimo terceiro. A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio; e o que inclinou a cabeça no Meu Peito. E traí e fui traído. e duvidei, impacientemente, e descartei-me; e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato (embora nada daquilo fizesse sentido). Não subi aos céus (nem era caso para isso), mas desci aos infernos (e pela porta de serviço): comprei e não paguei, faltei a encontros, cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros. Agora, como num filme descolorido, chegou o terceiro dia e nada aconteceu, e tenho medo de não ter sido comigo, de não ter sido comido nem ter sido Eu. Manuel António Pina

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Cedo ou tarde…

Os três pediram café; um curto, um carioca e um descafeinado. Rodrigo, homem de poucas e sábias palavras, manteve-se calado a maior parte, enquanto os outos dois… “Quem é o seu melhor amigo?”, Marcos perguntou. “Você?” “Quem livra a sua cara de situações embaraçosas, resgata à meia-noite quando o carro pifa, dorme com você em hospitais, paga a sua fiança, se for necessário, vira o seu fiador, seu guarda-costas, seu pára-raio.” “Você, você, você.” “Me conhece, quem é o seu amigo mais fiel?”, insistia Marcos. “Você.” “O mais contraditório?” “Você” “O mais doido, insatisfeito, incoerente?” “Você” “E o mais sedutor?” “Você. Disparado.” Chega o café e a conta. Marcos oferece pagar. E narra: “Não sou sedutor ortodoxo convicto, nem tenho o dogma como ideal de vida. Passei a praticar depois que a ex me largou. É um comportamento dúbio: querer me vingar, sair com o maior número de mulheres, e ao mesmo tempo sofrer de escassez amorosa. Nasceram rancores, depois de eu ter sido largado por duas mulheres que eu amo. Amava. Aquelas… Agora, procuro em cada mulher um novo atalho, que me tire desse estado.” “Que estado?” “De carência induzida. Procuro uma mulher que me faça esquecer. Como não encontro, testo, e me comparam a um galinha. Só existe uma pessoa que pode me salvar.” “Quem?” “A tua mulher.” “A Lúcia? O que tem a Lúcia?” “Tudo.” “Tudo o quê?” “Tenho pensado nela. Eu queria ter algo com ela.” “Com a Lúcia?!” “Você é meu amigo, não fique ofendido.” “Ter o quê?” “Uma relação.” “De amor?” “Sexual. Eu queria ter um caso com a sua mulher.” Olharam o garçom passar o cartão e retirar o boleto. Olharam a fumaça do café. Como se nela, um futuro possível. “Eu queria ir pra cama com…” “Tá, tá, não precisa repetir. E será a única pessoa que pode te tirar do estado de carência?” “Ah, você concorda com ele”, disse então Rodrigo. “Cala a boca! Estou chocado.” “Comigo?”, perguntou Marcos. “Com a Lúcia. Não imaginava que ela tinha este poder.” “De despertar desejos? De curar? Não me leve a mal.” Ele olhou para Rodrigo, que bebericava o seu carioca. “O que foi?”, perguntou Rodrigo. “Você ouviu o que ouvi?” “Lógico.” “E você não vai falar nada?” “O que eu posso fazer?” “Me ajude a esganá-lo!” “Mas é o seu melhor amigo. Se não rolar sinceridade entre amigos, não é amizade. E, ora, a Lúcia é um mulherão. Dos três, você é o mais sortudo”, disse Rodrigo. Era o pacto. Dos três, ele era o único casado. E vivia desdenhando a mulher, Lúcia. Reclamava do seu temperamento, seus temperos, suas tendências, suas crenças. Os amigos Marcos e Rodrigo chegaram antes e combinaram. Porque são os seus melhores amigos. Resolveram provocar e demonstrar interesse em Lúcia, para que o amigo parasse de invejar aquela vida de solitários desquitados quarentões amargurados que, acredita, é mais inspiradora do que a sua de casado. Rodrigo retomou: “Lúcia sempre foi a melhor e é ainda a mulher mais deslumbrante da cidade. Você não sabe o que ela provoca com aquele sorriso? Ela é interessada em tudo, conversa, faz perguntas, fala de assuntos sem o menor constrangimento, tem humor, uns dentes lindos, sabe se vestir com discrição, sabe como andar, os olhos mel que, quando bate sol, ficam verdes, fora aqueles braços com pelinhos loiros, ela é maluquinha…” “Tá, tá, tá!” “É uma coisa, mesmo!”, concluiu Marcos. “Não fala assim! “Melhores amigos falam tudo.” Ele se levantou tonto. Nunca imaginara que Marcos comunicasse uma declaração com proposta tão indecente. “Nem por um milhão de dólares!”, ele disse e saiu fora. Os amigos enfim riram da provocação: “Também, não é a Dennie Moore”. “Nem você o Robert Redford”.Ele dirigiu a noite toda pela cidade. O celular tocava, ele via, era Lúcia, não atendia. Guiou por todas as ruas da infância e adolescência. Depois, cruzou viadutos com nomes de militares. Passou por floriculturas e joalherias. Até voltar tarde para casa. Bem tarde. De mãos vazias. Entrou na ponta dos pés, como se um ladrão invadisse uma casa desconhecida. Lúcia dormia. Que lindo. Olhou para a mulher. Encanto. Ela é deslumbrante mesmo. Lembrou-se das afinidades. Tomou um banho sorrindo. Uma coisa. E se enfiou na cama sem acordá-la. Então, ao invés de abraçá-la com toda a força, virou-se para o lado e começou a tremer de medo. Pânico. Uma mulher daquela, ele não conseguirá segurar, logo o primeiro que usar as palavras certas a levará, os amigos, o chefe, o professor de meditação, um garçom do Ritz, do Spot, do Habib’s, um cineasta pernambucano, o Rodrigo Santoro, o Tato Malzoni, o Quincy Jones! Eu sou um nada e me casei com a mulher mais charmosa, atraente e discreta da cidade, e nem reparava mais em tanto brilho no olhar, nem nos pelinhos loiros, nem no humor, nos dentes, ela se tornara comum, Lúcia, a patroa, a rotina, o estorvo, o entrave de uma vida sexual variada e dinâmica, e não a divindade que inspira poesia em todos os cantos. Ele se levantou da cama. Olhou para os lados. O pânico se tornou incontrolável, terror. Suava. Falta de ar. Você não a ama mais. E ela o largará logo, porque é muita areia para o seu… Sem acordá-la, abriu as gavetas e começou a fazer as malas. Deixarei o caminho livre, musa! Quando escutou a voz meiga de Lúcia. “Môr? Que tá fazendo?” “Desculpe. É inevitável. Não adianta me impedir. Cedo ou tarde…” Marcelo Rubens Paiva

domingo, 23 de setembro de 2012

Sonho de quase-consumo

Deixou passar, deliberadamente, a semana de inauguração. — Muita gente, não se pode nem andar direito, muito menos escolher bem as compras. Aproveitou o tempo para, em segredo, alimentar o seu incrível sonho de quase-consumo. Finalmente, partiu para o tal supermercado, o maior e mais completo da América Latina, segundo a propaganda luxuosa e extremamente estimulante, distribuída apenas para um público-alvo de grande poder aquisitivo. Tinha conseguido o prospecto na casa do Dr. Charles Enrico Gomyd, pelo nome, já se vê, autoridade governamental ou algum manda-chuva de multinacional. Ao entrar, sem esconder sua disposição, escolheu um carrinho com corrente e amarrou-o a um outro. Ia começar pela seção de eletro-doméstico, mas foi praticamente impedido por um vendedor, tipo relações públicas, da área da informática: o Senhor não gostaria de conhecer nossas promoções especiais? Ora, parecia até combinado. Aceitou a "provocação" e começou escolhendo não apenas um, mas dois computadores. Claro, tomou como base a sólida opinião do Seu Gomyd: "Quem tem apenas um, não tem nenhum; a solução ideal é ter um de mesa e outro para viajar". Vai daí que foi logo apanhando um note book, aliás um super note book (celeron 400, 64 Mb, HD de 6.4 Gb, CD-Rom 40x etc etc) e um PC "de mesa" com todos os periféricos possíveis e imagináveis "mesa de ping-pong, meu camarada", pensou e riu para seus botões). Quase com impaciência fingiu ouvir e entender a longa e desnecessária explicação decorada do vendedor. Mesmo assim ficou maravilhado com a rapidez com que ele fazia aparecer uma série infinita de lindos desenhos, inclusive um sobre futebol de verdade, com o Flamengo vencendo sempre. Gostou também de saber que o computador tinha uma agenda de endereços: Puta agenda, malandro! Livre do vendedor vitorioso (ou quase-vitorioso), conforme seu desejo inicial, partiu para a seção de eletro-doméstico, na ala dos importados: Caramba, isto aqui é mesmo um assombro! Escolheu um equipamento japonês, talvez o menor de todos, mas, certamente, o mais completo e o mais caro. Pudera, nunca vira tanto lazer num só aparelho: tv a cores, DVD, vídeo laser, tape deck, gravador de rolo... O volume quase que lota um dos carrinhos, mal cabendo um mix incrível, recém-lançado, que deixava todos os outros liquidificadores no chinelo. Nas virtudes e, também, no preço. Quase sem parar, ao passar pelos discos, escolheu, entre outros — até para o seu espanto de velho pagodeiro — um CD com o trio Pavarotti—Carreras-Domingo e um recém-lançado conjunto dos principais momentos de Maria Callas: — Imagino estes três, mais a Dona Maria Callas formando um grupo de puxadores de samba enredo lá na Escola, queria ver a cara do Walter Alfaiate mesmo com aquele vozeirão! Era apenas um começo, mas algumas pessoas já começavam a olhá-lo com admiração. — Este sabe o que é bom! Sem nenhum roteiro prévio de compras, da seção de eletrodomésticos, passou para a de bebida. — Chateau Mouton-Rotchschild 95 — Pauillac: 1.000 reais. em promoção, hum, deve ser um vinho razoável. Ato contínuo colocou duas garrafas no segundo carro. Deu alguns passos, pensou melhor, lembrou das sangrias que fazia com o vinho Sangue da Terra (5 reais o garrafão), voltou e pegou mais três garrafas. Na mesma prateleira, mais adiante, passou para os uísques. — "Com menos de 21 anos, para mim não serve", lembrou a frase preferida do Dr. Charles quando servia bebida para seus amigos. Não os amigos da capoeira, também queridos, mas, segundo ele, sem "embocadura" para apreciar uma bebida mais refinada. Vinha daí, aliás, através da apresentação de Mestre Paulinho Botafogo (ou Paulinho da Jussara), sua amizade com o Doutor, mais conhecido, nas rodas de capoeira da Central e da Penha, como Gomyd Angoleiro ou, ainda, Gomyd Anestesia. Um dos poucos capoeiras com dois apelidos, ninguém sabendo explicar muito bem a origem de nenhum deles. Nem mesmo o Paulinho da Jussara, extraordinária figura humana, boêmio, filósofo, tocador de cavaco, tremendo compositor (premiado!) , professor de português nas horas vagas e, por esporte, dono de uma quitanda onde arma um senhor pagode de mesa todas as sextas ("pagode em pé é coisa de paulista almofadinha."...). — "Este negócio de uísque "di maior de idade " é coisa mesmo de gente rica, mas tudo bem ", filosofou encerrando a divagação paralela e retomando as "compras ". Pegou três garrafas de Royal Salute, "21 years old" e foi em frente. Ainda no corredor das bebidas, reconheceu um rum cubano (Siete Anos) que tomara certa vez com um colega de infância que só falava em comunismo. Mais duas garrafas. Talvez por associação de idéias (Cuba), das bebidas partiu para a tabacaria. Uma sala especial, temperatura especialmente controlada, onde um cubano, profundo conhecedor de "puros" e extremamente simpático (Señor Manuel) professorava sobre o assumo. Ficou alguns minutos ouvindo, atentamente, as explanações; tempo suficiente para decidir-se por duas caixas de Romeo y Julieta, tamanho Churchill, e uma caixa de Partagas, em sutil homenagem a Ernesto Che Guevara (segundo o Senõr Manuel, Che Guevara preferia esta marca). Seguiu em frente, levemente sorridente, lembrando-se dos charutos que ousava enfrentar de vez em quando: "mata-ratos da pior qualidade" !. A rápida exposição do cubano, entretanto, teve outros méritos, pois lembrou, não apenas a importância de um bom casamento entre um bom charuto e um bom vinho, mas, também, o casamento desta dupla, com um sem-número de "appetizers" (tira-gosto, para os íntimos). Partiu, então, acelerado, para a seção de queijos, frios e iguarias afins. — Que torresmo que nada, que guela de galinha, desta vez, teremos caviar, patê de foie gras, salmão e alguns quilos de brie, emmental, camembert, roquefort e outros "fromages". Com todo respeito à mortadela (partida a facão) e ao queijão frito lá da quitanda do Paulinho da Jussara. Do pensamento à ação, com a ajuda do caderno de propaganda, quase lota o segundo carro com cinco latas de caviar russo, queijos franceses e vários outros produtos desconhecidos ("se estão nesta área só podem ser coisa fina"). Analisando, especialmente seu segundo carro, atentou para uma falha: como servir as bebidas e as iguarias? A esta altura, orgulhoso, já estava trocando idéias avançadas sobre a arte de se viver bem com alguns outros clientes. Nenhum, entretanto, com os carrinhos tão invejavelmente cheios como os dele. A um destes, da maneira mais descontraída que pode teatralizar, perguntou onde ficava a seção de copos e pratos. — Importados, é claro; quero apenas copos de cristal Riedel e louças de porcelana da China. Conseguiu um terceiro carro para abrigar seus cristais e porcelanas; conseguiu, também, que a gerência colocasse um auxiliar para ajudá-lo com os três carros. Estava chegando ao fim, faltava apenas mais uma coisa, um pequeno detalhe, mas que não abriria mão, em hipótese alguma: queria fazer seu banquete, ao lado da mulherzinha amada (era aniversário dela, seria uma surpresa), pisando num belo tapete persa. Não foi fácil escolher, muito menos colocá-los — é, comprou um grande e um pequeno sobre os três carrinhos. Como escolher quando a vontade é comprar todos? Acabou optando por um hadzistan para o seu quarto e um pequeno mossul para o banheiro ("por que não"?). Sem pressa, escolheu a caixa com a maior fila. Na fila foi virando celebridade: "Lindas compras, hem"? "Quem pode, pode, né"! Ao perceber que estava chegando a sua vez, com insuspeitável charme, pediu que olhassem seus carros, pois tinha que dar um pulo no banheiro. Generosamente, como se fosse um adiantamento de gorjeta, deu ao garoto que lhe ajudava uma nota de cinco reais, exatamente a metade do que levava no bolso. Passou "batido" pelo banheiro indo direto para o ponto do ônibus que o levaria até a Central do Brasil; de lá, com mais duas conduções, finalmente, chegaria ao seu quartinho humilde, num conjunto habitacional do extinto BNH, na Baixada Fluminense. Quartinho humilde, distante léguas e léguas do imponente e recém-inaugurado supermercado, mas, diga-se, a bem da justiça e da verdade, cheio de sonhos malandríssimos de consumo. No caminho de casa, na venda do compadre Paulinho, saindo da rotina (normalmente levava 150 gramas) pendurou 400 gramas de mortadela — "afinal, o presunto leva a fama, mas todo mundo gosta mesmo é de mortadela" — e um xarope de groselha. Passando pelo cemitério tratou de descolar, também, uma linda flor para sua namorada aniversariante. Que adorou a rosa, mas ficou furiosa por não ter participado da fascinante visita ao supermercado. — "Já pensou — completou meio zangada, meio sonhando — aposentar o leite de rosas e lotar mais dois carrinhos com altos perfumes (começou a ler uma lista apanhada não se sabe onde): bulgari, cacharel, chanel, cartier, christian dior, givenchy, guy laroche"...?! André Luiz Lacé Lopes

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Onde está Deus?

Ainda, o município de Santa Clara conserva tranqüilidade de cidade do interior. Deve ter no máximo cinco mil habitantes. Na praça, em frente à capela, os jovens se encontram. Ouvem músicas, cantam, dançam, e os amores florescem entre os casais. Adiante, a sorveteria do Gaspar. O concorrido cinema. O teatro onde companhias se instalam em temporadas. Ocupando a esquina principal, a antiga padaria do seu Manoel produz o melhor pão de milho de toda região. Sim, Santa Clara se mantém quase alheia às transformações da vida moderna. Pena que a televisão vá modificando o sotaque ali característico. Mesmo assim, mantendo a tradição, as famílias conservam hospitalidade e se reúnem para o almoço domingueiro ou festejo de dia santo. O fato é que próximo à praça, numa rua transversal, mora dona Tereza. Mãe de dois filhos, cujo marido meteu-se em negócio de caixeiro viajante e sumiu a vista de todos. Ela, senhora de trinta anos, encara as dificuldades com talento no preparo de doces e salgados. Simpática e cuidadosa consegue dar sustento a casa, e aos meninos Toninho e Agenor, de 10 e 8 anos. Verdadeiros pentelhos. Pois não há duas pequenas almas mais endiabradas. Arte praticada por adultos é obra. Se, por crianças, é travessura. E, nessa arte, a dupla é amplamente reconhecida. Choque elétrico em gatos. Rato na gaveta da mesa da professora. Sapos nas mochilas das colegas de classe. Trocas de material escolar. Sumiço de lanches. Nó em roupas penduradas nos varais. Fechaduras de portas tampadas com chicletes. As brincadeiras valem reprimendas, mas eles não se emendam. Pneus de carros esvaziados. Assentos do cinema lambuzados de graxa. Nem a batina do sacristão é poupada. Um dia apareceu cheia de açúcar e repleta de formigas. Até o vinho sagrado fora substituído por refresco. Tudo que é peraltice, Toninho e Agenor praticam. A ausência do pai é a explicação dos temperamentos arredios. Em consideração a mãe, a vizinhança é paciente. São crianças, explicam. Amanhã ou depois tomam jeito. É certo, porém, que umas boas palmadas não iam mal! Dona Tereza é incapaz de levantar a mão aos filhos e sofre. Pois qualquer caso inusitado que aconteça no vilarejo, de imediato, os culpados são eles. Mas eis que um padre austero assume a igreja local. Traz fama de exigente quanto à disciplina das ovelhas rebeldes do rebanho de Cristo. Por conselho das vizinhas, dona Tereza resolve enviar Toninho e Agenor a uma sessão. Padre Afonso é alto e forte. Tem olhos miúdos, a barba cerrada e a cara quadrada. Não ri por nada. E seu oficio é regido de forma incontestável. Sabedor das traquinagens dos guris, o severo vigário segura uma vara de marmelo defronte ao altar. Ambos chegam temerosos, e notam falta das imagens nas paredes. Não sabem que estão sendo restauradas. De feitio peculiar, a pergunta inicia o sermão. Padre Afonso encorpa a voz e brada: - Onde está Deus? Eles ficam parados e não dizem nada. Com os braços estendidos acima da cabeça, vibra intencionalmente a vara no ar: - Onde está Deus? Repetiu o clérigo em tom rigoroso. Um duplo susto. Os meninos não esperam por mais. Saem correndo da igreja e só param em casa quando dentro do guarda-roupa. Dona Tereza, que já se preocupava com a demora dos filhos, os encontrou trêmulos: - O que aconteceu? - Mãe, agora a gente tá encrencado! Deus sumiu, e o padre acha que a culpa é nossa! Marco Pezão

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Histórias de pescador, digo, de coveiro

- Papai, morto chora?O pai atônito nada respondeu, fixou o olhar na confusão e a ali ficou parado até receber a ordem do chefe para chamar a polícia. Era tarde de um domingo de julho de 1979, o tempo nublado estava tão escuro quanto as roupas da família no velório. O nome do falecido, João Severino, coveiro num cemitério do Rio de Janeiro, não lembra. Diferente do cheiro de rosas que tomava o lugar. Tão vivo em sua memória quanto a certeza de que seu pai nunca havia ouvido falar naquele paradoxo da fisiologia humana, aliás, que ninguém que conhecesse ouviu falar. Nunca. Um cheiro que não existia no sertão onde nasceu. Que não existia no humilde casebre onde vivia com a família na favela próxima ao local de trabalho de seu pai. Naquela tarde era dia de trabalho escolar. João tinha 13 anos e foi incumbido a descrever a rotina de seu pai no trabalho profissional. Logo naquele dia de confusão. A pequena capela estava toda enfeitada. João não entendia o porquê de tantas flores, e flores amarradas num negócio redondo que ele nunca tinha visto, tantos véus e até bexigas de festa de criança. O falecido era pagodeiro e devoto de São Jorge. “Ô santozinho arrêtado”, comenta o coveiro. Os amigos estavam ou vestidos de branco ou de vermelho. A família, já citada. E a amante... a amante estava com um vestido dourado e com dois cachorros dessas raças de madame pintados de rosa no colo. “A danada queria mesmo se destacar, ‘mostra’ que estava ali para pedir os direitos dela”, ri João. O morto pagodeiro era dado com um santo pela família que até então não sabia da existência da amante com quem tinha uma vida paralela, três filhos, dois cachorros e quatro periquitos. Como o coveiro sabia de tantos detalhes, nem ele soube responder, disse que foi o que ouviu falar no meio da gritaria que tomou o velório. “Ai foi assim...” todos estavam orando, foi logo após a reza do padre que mais parecia um ator mexicano dessas novelas que passam no canal 11. Era moreno, alto e tinha um bigode esquisito. Claro que João só se deu conta disso anos depois quando seu pai comprou a primeira televisão em preto e branco da família. O padre estava no meio do pai nosso quando a mulher dourada entrou com os caninos que não paravam de latir. Era bonita, alta, um rosto esticado que escondia a idade. “Oh, não sei não, pela cara eu dava uns 30, pelo resto... ah pelo resto... o resto era de 20 de lamber os ‘bêiço’, e olha que eu só tinha 13, hein.” Loira de cabelos enrolados até a cintura, pernas grossas despidas no vestido curto e, dourado, e com um pandeiro... “nossa senhora”, que explicava a pulada de cerca. “Toda amante é carnuda e loura, né?! Ainda cometo um pecado desse”. A esposa era de um tipo certinha. Estava com um miúdo no colo que era esculpido o pai. Na cara que tinha uns 40. Era loira também, mas não dessas que dão água na boca e sim dessas que enchem os olhos de lágrimas só de encostar, parecia uma santa a orar pelo marido ali esticado. Até que sua atenção foi tomada pelo rosa dos cães e em seguida pelo dourado dos paetês. Aquilo não era roupa de velório, nem de gente decente. E apesar das bolas e das roupas dos amigos em homenagem a devoção ao santo, aquilo não era uma festa. Era um momento de tristeza. E também de gargalhadas assim que os outros pagodeiros da banda avistaram a amante e relembraram a história que acompanharam do danado nos últimos dez anos. A amante foi logo se aproximando do caixão. Parou ao lado da viúva oficial e segurou em seu ombro. Até então, pareciam amigas. Tirou os óculos de abelha, moda da época e limpou discretamente o borrão da maquiagem estragado pelas lágrimas. “Eu sinto muito à sua dor, mas preciso lhe contar...” e as lágrimas da santa oficial cessaram sem acreditar no que ouvia. A mais sincera confissão da traição sórdida da boca da amante de um homem que julgava digno, que lhe dera um herdeiro com muito custo e anos de tratamento e não três vindos com muita facilidade. Toda a história veio à tona, de uma só vez, sem querer saber se feriria a imagem do homem, sem querer saber se abalaria a falsa paz da família, sem querer saber se importunaria os ouvidos dos presentes. E daí começou a briga. Palavrões não foram proferidos, “briga santa, né?!”, mas a gritaria tomou conta e João não conseguiu encaixar todo o enredo, apenas o que descreve o texto. Bexigas estouraram e os aramados de flores foram jogados ao chão por impulso do desespero da viúva. “Que meu marido se debulhe em lágrimas se essa história for verdade”. Inacreditável. “O morto tá chorando”, gritou alguém. Todos pararam e encheram o entorno do caixão. Foi preciso força nos braços da viúva para afastar toda aquela gente e ver de perto o milagre. - Papai, morto chora?! - insistiu João. - Fica quieto menino! - Meu marido tá vivo! - Ei, o marido é meu! E isso é impossível, ele morreu nos meus braços. Segundo a história do coveiro, que viu com os próprios olhos “que a terra há de ‘cumê’”, o morto chorou. Mas não um choro de muita água. Uma lágrima, apenas. Uma pequena gota que fez do velório um episódio, para muitos assustados, de terror, para os mais descrentes em fantasmas, de comédia. Para João que não duvidava de nada depois que sentiu o mar pela primeira vez, o episódio seria um prato cheio para a professora de português que o enviou para aquela tarefa que, de inicialmente chata, tornou-se finalmente emocionante.••. Marianna Kiss

domingo, 2 de setembro de 2012

MEMÓRIAS DE UM MENDIGO

Num dia qualquer do início de dezembro acordei cedo e notei minha garrafa vazia. A noite passada foi foda, o vento zunia desesperado em meus ouvidos, ainda bem que a pinga durou até eu dormir. É a maior delícia dormir sob o efeito da branquinha. Que vocês não venham me criticar, eu bebo não é por que gosto é a situação que me obriga. E agora deu pra ter manda chuva dando pauladas nas nossas cabeças, achando que nós somos sacos de lixos. Aí é que tem que beber mesmo. Esperei a multidão acabar, foi melhor assim, depois me levantei e fui na birosca do seu Jorge tomar um pingado e encher a minha garrafa. O que me chama a atenção no meio desse povo indo trabalhar, são as mulheres vestidas em trajes mil. No calor é pior ainda. Falo pior por que comigo o buraco é mais embaixo. Eu também sou ser humano e como tal também tenho desejos sexuais. Quero trepar, comer, realizar fantasias e gozar. E pra realizá-los é só por meio da masturbação, não há outro jeito. Nessa parte ainda dá pra realizar, o difícil é os meus sonhos que alimento desde que vim morar na rua. Sempre fui um sujeito muito confuso. Quando tinha meus vinte e quatro anos estava revoltado com muita coisa em minha volta. Nessa época eu lia bastante coisa sobre as revoluções, as teorias, os pensadores como: Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel e Platão. Eu não tinha com quem conversar, as pessoas que estavam em minha volta não acompanhavam o meu raciocínio. Pra ter certeza que tudo o que eu estava refletindo não era fruto do meu ser confuso, resolvi me posicionar. A primeira coisa foi me limitar a consumir determinados produtos dos Estados Unidos, e olha que argumentações não faltavam. Depois fui me fechando até acreditar na auto-gestão, e não mais pagar impostos, onde eu mesmo poderia consumir minhas próprias produções, desde meu café da manhã até a cama que acomodaria o meu sono. É claro que isso envolvia um carro também. Mas as minhas reflexões foram tão profundas que aqui estou, dormindo na rua sem pagar aluguel, sem colaborar com o pagamento da dívida externa, sem pagar imposto, sem contribuir com merda nenhuma. Quando tirei a conclusão me achei um grande idiota, pois para fazer minha própria roupa eu teria que comprar o pano, a linha de costura e uma máquina. Porra, o pano viria da industria, a linha e a máquina também, aí não dá. Lembro que cheguei a pensar até no pequeno tubo que viria enrolado a linha de costura. Vim morar na rua. Na época em que eu lia os pensadores também procurava informações atuais, pra isso eu precisava da porcaria da televisão que para assisti-la era necessário consumir energia, e era nesse momento que estavam discutindo a privatização das empresas fornecedoras de energia. Ás vezes apelava para os jornais vendidos nas bancas, mas era a mesma coisa, o dinheiro que eu pagava ao jornaleiro era dividido entre ele, o distribuidor, os editores, a gráfica e automaticamente cada um pagava suas contas com esse dinheiro. Queria arranjar um jeito de boicotar tudo, a empresa de telefonia, os artistas fabricados pela mídia, o tênis da apresentadora de televisão, a bicicleta de dezoito marchas, o carro do ano, a comida enlatada e várias coisas mais. Evitando consumir tudo isso, naturalmente eu não contribuiria com o salário daquele soldadinho de chumbo. Estava revoltado ao extremo, e pra não mandar todos tomarem no cu, resolvi morar na rua, pelo menos aqui não pago imposto nenhum, e olha que continuo atualizado. Tem uma banca de jornal ali na Ipiranga onde o jornaleiro que me considera muito, devido as minhas dissertações, deixa-me ler todas as notícias dos jornais diários. Não vou dizer que aqui é o paraíso, mas só pelo fato de eu não estar contribuindo com nada, já me realizo internamente. Agora pouco estava dando altas gargalhadas com um companheiro de rua. Felicidade em não fazer um filho que já iria nascer devendo. Já é noite. Junto meus panos, pego minha garrafa e me recolho. Sacolinha

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Conversinha Mineira

- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo? - Sei dizer não senhor: não tomo café. - Você é dono do café, não sabe dizer? - Ninguém tem reclamado dele não senhor. - Então me dá café com leite, pão e manteiga. - Café com leite só se for sem leite. - Não tem leite? - Hoje, não senhor. - Por que hoje não? - Porque hoje o leiteiro não veio. - Ontem ele veio? - Ontem não. - Quando é que ele vem? - Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem. - Mas ali fora está escrito "Leiteria"! - Ah, isso está, sim senhor. - Quando é que tem leite? - Quando o leiteiro vem. - Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê? - O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada? - Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade? - Sei dizer não senhor: eu não sou daqui. - E há quanto tempo o senhor mora aqui? - Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos. - Já dava para saber como vai indo a situação, não acha? - Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem. - Para que Partido? - Para todos os Partidos, parece. - Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui. - Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida... - E o Prefeito? - Que é que tem o Prefeito? - Que tal o Prefeito daqui? - O Prefeito? É tal e qual eles falam dele. - Que é que falam dele? - Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito. - Você, certamente, já tem candidato. - Quem, eu? Estou esperando as plataformas. - Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa? - Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí... Fernando Sabino

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Bom tempo, sem tempo

Não chovia, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam. As plantas submergiam, os animais morriam, as pessoas não tinham tempo de emigrar. Assim era a vida naquele lugar privilegiado, onde medrava tudo para todos, havendo bom tempo. Mas não havia bom tempo. Havia o exagero dos elementos. O mágico chegou para reorganizar a vida, e mandou que as chuvas cessassem. Cessaram. Ordenou que a seca findasse. Findou. Sobreveio um tempo temperado, ameno, bom para tudo, e os moradores estranharam. Assim também não é possível, diziam. Podemos fazer tantas coisas boas ao mesmo tempo que não há tempo para fazê-las. Antes, quando estiava ou chovia um pouco - isto é, no intervalo das grandes enchentes ou das grandes secas -, a gente aproveitava para fazer alguma coisa. Se o sol abrasava, podíamos fugir. Se a água vinha em catadupa, os que escapavam tinham o que contar. Quem voltasse do êxodo vinha de alma nova. Quem sobrevivesse à enchente era proclamado herói. Mas agora, tudo normal, como aproveitar tantas condições estupendas, se não temos capacidade para isto? Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda. Carlos Drumond de Andrade

domingo, 8 de julho de 2012

Uma segunda chance

Depois do acidente os olhos de minha mãe nunca mais sorriram, perderam o brilho, ela virou uma mulher triste, só não se matou porque tinha outro filho para criar. Meu pai nunca falou sobre o acontecimento, guardou tudo dentro dele. Talvez tivesse sido este o motivo do AVC que o matou. Quanto a mim, cresci numa redoma de vidro, onde nada podia me machucar. Os livros foram meus melhores amigos. Num bairro próximo de minha casa tinha um sebo onde eu comprei os livros mais importantes da minha vida, aqueles que ajudaram a moldar minha personalidade, li os livros de Julio Verne, coleção Vaga-Lume, Robert Louis Stevenson, Pedro Bandeira, Marcos Rey, Raquel de Queiroz, entre outros. O dono do sebo era um cara muito esquisito, parecia ter saído de algum livro. Ali havia uma coisa que sempre me intrigou, uma maquina de escrever antiga, que ficava dentro de uma redoma de vidro com fechadura. Com o passar dos anos fizemos amizade e nosso assunto eram livros, escritores e historias. Sempre perguntava a ele o porque de tanto cuidado com aquela maquina de escrever. Ele dizia que a maquina era magica, o que fosse escrito nela, poderia se transformar em realidade. O tempo foi passando, a dor de minha mãe não foi diminuindo, estudei, me formei, consegui um emprego, casei, tive filhos e enterrei minha mãe. Um dia estava em casa e recebo uma encomenda, aquela mesma maquina da minha infância. Estava exatamente como eu me lembrava, dentro de uma redoma de vidro. Junto com a chave veio uma carta. “Você é a única pessoa que vai saber usa-la como deve ser”. Curioso como sempre, quis saber porque o dono do sebo mandou a maquina para mim. No dia seguinte fui no sebo, ao chegar lá, aquela loja onde passei momentos maravilhosos junto com os livros e conversando com o dono, simplesmente não estava mais lá. Entrei na loja, que agora vendia peças automobilísticas e perguntei para um funcionário o que tinha acontecido com o sebo. Ele me explicou que o dono da loja morreu e que os herdeiros fecharam o sebo e venderam a loja. Saí de lá triste, era muito difícil saber que um local que marcou sua infância, simplesmente não mais existe. Durante alguns dias fiquei depressivo, pensando na pequenez da vida. Coloquei a maquina no meu escritório, bem de frente para mim, ela ficava me olhando, como que pedindo para escrever alguma coisa. Depois de quase um ano olhando para a maquina decidi escrever. Acordei decidido a escrever sobre o dia em que meu irmão foi atropelado e morreu. Nós dois saímos de casa, eu tinha dez anos e ele sete. Cada um com sua lata de linha e pipa. A gente gostava de brincar no campinho que ficava perto de casa, no dia anterior havia chovido muito, a lama tomou conta do lugar, resolvemos brincar na rua. Era uma rua tranquila, passavam poucos carros. Mandei um irmão levar a pipa para que eu pudesse puxa-la. Ele ficou segurando a pipa de baixo do fio, mandei ele chegar mais para o meio da rua.. Nesse momento parei de escrever, quando ele foi para o meio da rua, veio um carro, dirigido por um bêbado e passou por cima dele, foi morte instantânea. Só a lembrança me fez tremer, não iria escrever o que aconteceu. Iria escrever o que deveria ter acontecido. ...Mandei meu irmão ir para o outro lado da rua, um carro entrou na rua a toda velocidade e por pouco não atropelou meu irmão, passou pelo local onde ele estivera segundos atrás e se chocou no poste. Voltamos para casa. Os olhos de minha mão não ficaram tristes, meu pai não morreu. Tivemos uma segunda chance. Julio Pecly

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O Grande Assalto

Avenida Santo Amaro. Às 13 h. Um homem mal vestido para em frente a uma concessionária de automóveis fechada e nota as bolas promocionais amarradas à porta. Um policial desce da viatura, olha para todos os lados e observa um suspeito parado em frente a uma concessionária. O suspeito está mal vestido e descalço. Uma senhora sentada no banco do ônibus que pára na avenida para pegar passageiros comenta com a moça sentada ao seu lado que tem um mendigo todo sujo parado em frente a uma loja de automóveis. Um senhor passa por um homem todo sujo. segura a carteira e começa a andar apressado. Logo que nota a viatura estacionada mais à frente, se sente seguro, amenizando os passos. Um jovem tenta desviar de trás do ônibus parado, os policias que ele vê logo à frente lhe trazem desconforto, pais seu carro está repleto de drogas que serão comercializadas na faculdade onde estuda. O homem malvestido resolve agir, dá três passos à frente, levanta as mãos e agarra duas bolas promocionais; faz a conta rapidamente e se sente realizado, quando pensa que ao vender as bolas comprará algo para beber. Uma moça alertada pela senhora ao seu lado no ônibus, chama a atenção de vários passageiros para o homem que, segundo ela, é um mendigo, e diz alto que ele acabou de roubar algo na concessionária. Um jovem com o carro cheio de drogas para vender na sua faculdade nota o homem correndo com duas bolas e dá ré no carro ao ver os policiais vindo em sua direção. Um policial alcança o homem mal vestido e bate com o cabo do revólver em sua cabeça várias vezes; o homem tido como mendigo pelos passageiros de um ônibus em frente cai e as bolas rolam pelo asfalto. Um motorista que dirige na mesma linha há oito anos tenta ficar com o ônibus parado para ver os policiais darem chutes e socos em um homem malvestido que está caído na calçada, mas o trânsito está livre e ele avança passando por cima e estourando duas bolas promocionais. Ferrez

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Um Som de Trovão

O anúncio na parede parecia tremular sob uma película de água quente. Eckels sentiu suas pálpebras estremecerem sobre seu olhar, e o anúncio queimava, na momentânea escuridão: SAFARIS NO TEMPO, INC. SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO VOCÊ DIZ QUE ANIMAL. NÓS O LEVAMOS LÁ. VOCÊ O ABATE. Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca forma­ram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares, para o ho­mem atrás da escrivaninha. — Este safári garante que eu volte vivo? — Não garantimos nada — falou o funcionário — exceto os dinos­sauros. — Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safári ao pas­sado. Ele vai dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não ati­rar, não se atira. Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível processo do governo, quando voltar. Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa con­fusão disforme, de fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e incendiadas. Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propagan­da. De carvões e cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens, podem saltar; rosas sua­vizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas desaparecendo; tu­do ,voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se glo­riosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da se­mente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão. — Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. — Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados Unidos. — Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente, queriam vi­ver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas orga­nizar Safáris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa preocupar-se agora é... — Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele. — Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais ina­creditável de toda a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes. Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me! — Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro tiro. Seis lideres de safári foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de to­dos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo. O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se. — Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Tra­vis, ele é todo seu. Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes. Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a. D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia. Puseram suas máscaras de oxigênio e testaram os intercomunica­dores. Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safári, seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer. Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles. — Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo. — Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro. A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrá­rio. Os sóis voavam e dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores que jamais viveram nos inveja­riam hoje. Isto faz a África parecer com o Illinois. A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Má­quina parou. O sol parou no céu. A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safári com suas armas metálicas sobre os joelhos. — Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Ale­xandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe. O homem fez que sim. — Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinqüenta e cinco anos antes do presidente Keith. Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, so­bre um amplo pântano, por entre fetos e palmeiras. E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safáris no Tem­po, para seu uso. Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca se­não no máximo uma grama, flor ou árvore. É um metal antigravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de qualquer manei­ra que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, se­rão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprove­mos. — Por quê? — perguntou Eckels. Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vie­ram com o vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salga­do, grama úmida, e flores da cor de sangue. — Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do Tempo é um negócio ex­tremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal im­portante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução. — Isso não fica muito claro, — falou Eckels. — Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidental­mente matemos um rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão destruídas, certo? — Certo. — E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilhão de ratos, possivelmente! — Então estarão mortos; e daí? — E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que preci­sariam daqueles ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insetos, abutres, infinitos bilhões de formas de vida são lançados ao caos e à destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinqüenta e nove milhões de anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável, não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto, cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afo­ra, até seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num rato e deixará sua mar­ca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, po­derá nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca pise fora! — Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama? — Exato. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesi­mais. Um erro mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Tal­vez o Tempo não possa ser alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras sutis. Um rato morto aqui causa um desequilí­brio dos insetos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito mais sutil, como isso. Talvez algo ainda muito mais sutil. Talvez ape­nas uma respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos cuidadosos.. Esta Máquina, este Caminho, suas rou­pas e corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usa­mos estes capacetes de oxigênio de modo que não possamos introdu­zir bactérias nesta atmosfera primitiva. — Como sabemos que animais abater? — Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Ho­je, antes da viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e seguiu certos animais. — Estudando-os? — Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, obser­vando quais vivem mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num poço de alcatrão, ano­to a hora, minuto, e segundos exatos. Disparo um revólver de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enga­nar. Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos cuidadosos? — Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado conosco mesmos, nosso safári! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos? Travis e Lesperance entreolharam-se. — Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve suces­so; se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo. Eckels sorriu, palidamente. — Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé! Estavam prontos para deixar a Máquina. A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, pa­ra sempre. Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado. — Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brinca­deira, idiota! Se a arma dispara... Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus? Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande. Fique no caminho. Fique no Caminho! Moveram-se adiante, pelo vento da manhã. Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das eleições. Keith presidente. Todos celebran­do. E aqui estamos, perdidos num milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por meses, por uma vida intei­ra, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda. — Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o segundo, e Kramer o terceiro. — Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança. — Ah — fez Travis. Todos pararam. Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na ne­blina. Lá está ele. Ali está Sua Majestade Real, agora. A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros. Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta. Silêncio. Um som de trovão. Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex. — É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss! Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da metade das árvores, um grande deus do mal, do­brando suas delicadas garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços de­licados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e exami­nar os homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, ergui­da com facilidade contra o céu. Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam, ovos de aves­truz, vazios de qualquer expressão, exceto fome. Fechava a boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra úmida, deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos lindamente reptilianas tateando o ar. — Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua. — Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu. — Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredito, quie­to, como se não pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle em sua mão parecia uma ar­ma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é impossível. — Cale-se! — silvou Travis. — Pesadelo. — Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe metade de sua passagem. — Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora, quero desistir. — Ele nos viu! Lá está a tinta vermelha em seu peito! O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As moedas, com uma crosta de lama, fer­viam. No lodo, pequenos insetos esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos. — Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safáris, e segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu enfrentar. — Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina. — Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los mover-se. Deu um grunhido, incapaz. — Eckels! Deu alguns passos, piscando, hesitante, — Não por aí! O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a fren­te com um grito terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se, com o fogo. Um ven­daval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol. Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afun­daram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás. Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no tro­vão do lagarto. O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram em nuvens de folhas e ra­mos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para acariciar os ho­mens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris. Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu. Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos, brilhantes. O trovão dissipou-se. A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o amanhecer. Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ain­da fumegando. Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha con­seguido voltar ao caminho, e subira na Máquina. Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros, que estavam sentados sobre o Caminho. — Limpem-se. Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulan do um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo des­ligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma loco­motiva acidentada, ou uma escavadeira a vapor, no momento de des­ligar, com todas as válvulas sendo desativadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se assentava aos tre­mores. Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta. — Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que deveria cair e matar este animal, origi­nalmente. — Olhou para os dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu? — Quê? — Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve fi­car aqui, aonde deveria originalmente morrer, de modo que os inse­tos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo, como devem. Tudo equi­librado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de vocês a seu lado. Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, aba­nando as cabeças. Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com a fumegante armadura. Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo. — Lamento muitíssimo — disse. — Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se. — Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui! Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere... — Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapa­tos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso nos arruína! Seremos multa­dos! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o Governo Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à História! — Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira. — Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels! Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dóla­res! Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto do Caminho. Afunde os braços até os cotove­los na boca dele. Então poderá voltar conosco. — Isto é irrazoável! — O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não po­dem ser deixadas para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha faca. Cave-as! A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do baru­lho dos pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho. Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços enso­pados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma se­gurava algumas balas de aço. Então caiu e ficou lá, imóvel. — Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance. — Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima vez não vai sair para caçar este tipo de ca­ça. OK. — Ergueu o polegar para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa. 1492 . 1776 . 1812 . Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis olhou para ele por dez minutos. — Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada. — Quem pode saber? — Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça? Que me ajoelhe e reze? — Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma está engatilhada. — Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 . A Máquina parou. — Saia — ordenou Travis. A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exatamente a mesma. O mesmo homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mes­mo homem não parecia estar sentado exatamente atrás da mesma escrivaninha. Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando. — Claro. Bem vindos ao lar! Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios áto­mos do ar, e para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta. — OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se. — Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e havia algo no ar, uma substância tão tênue, tão sutil, que apenas um fraco aviso de seus sentidos su­bliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu cor­po gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além deste homem, que não era exatamente o mesmo homem que estava sentado àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que espécie de mun­do era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quen­te... Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado: SEFARIS NU TENPO, INC. SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO. CÊ DIS QUI ANIMAU. NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ. CÊOABAT. Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não uma coisinha assim, não! Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e muito morta. Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels. Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desman­char equilíbrios e derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes, por todos os anos atra­vés do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou pode­ria? Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição presidencial ontem? O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusi­lânime do Keith. Temos um homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado? Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trêmulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não podemos levá-la de vol­ta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos recomeçar? Não poderíamos... Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo. Houve um som de trovão. Ray Bradbury

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O aniversário

O Zé Mané levava uma vida de lascar. Nem de leve pegava maré mansa. Seu trampo era pesado paca. Das oito da matina às seis da tarde debaixo de sacaria. Uma puxeta de entortar qualquer patuá. E o salário, claro que era o mínimo. Daí, já viu. Com a vida custando os olhos da cara, o Zé Mané mal podia pegar uma gororoba. Pagava oitenta jiripocas por uma vaga num quarto com mais três parceiros para ter onde encostar 0 cadáver. E o que sobrava era pra comer. Mas sobrava tão pouco. Na verdade, o Zé Mané só rangava todos os dias porque o Seu Joaquim Portuga, dono do boteco do pedaço, era um chapa ponta-firme e fiava o sortido pra curriola a perigo. E essa era a sorte selada do Zé Mané. Uma zorra sentida. Apesar de ter nascido com o urubu plantado no seu destino, o Zé Mané, quando fazia aniversário, gostava de se embandeirar, comemorar de se esbaldar e os cambaus. Sempre fora assim. Desde pequeno, considerava o dia do seu aniversário um dia sagrado. Não trabalhava nesse dia, nem nada. Só enchia a caveira de cachaça. E, quando fez trinta anos, não deu outra coisa. O Zé Mané já amanheceu ligado. Logo cedo, deu um alô pros companheiros de quarto: — Tou fazendo anos hoje. A turma fez a milonga: — Boa! Parabéns! — Quer dizer que hoje tu paga as manguaças? — Tem que pagar. Afinal, o Zé não faz anos todo dia. E o Zé Mané não escamou: — Hoje é comigo mesmo. Nem vou pro batente. Os parceiros não duvidaram. Mas quiseram saber da situação. O Ditinho Preto, mais chegado ao Zé, tomou a liberdade: — Tu tá com grana pra garantir, Zé? Naturalmente, o aniversariante não tinha um tostão no bolso. Mas nem se tocou. Confiando no Seu Joaquim Portuga, tirou de letra: - Eu sei de mim. E, se mando ver, é porque garanto. Ô meu, tou fazendo trinta anos. Não sou nenhum moleque! Encabulado, o Ditinho se desculpou: — Não, eu sei. Mas é que nós, quando se dana a beber, bebe mesmo. Todos riram. E o Zé Mané fez o apontamento: — Sete e pouco tamos lá no boteco do Seu Quim. Cheios de esperança na farra, os companheiros do Zé Mané se arrancaram pro trabalho. 0 aniversariante ficou na cama. No seu grande dia, ele não tinha hora pra acordar. Mas, pro encontro combinado, ele não se atrasou. Às sete em ponto piou no boteco do Seu Quim. Não teve que esperar muito pelos amigos. Eles logo baixaram na parada. E chegaram fazendo zoada. Pique-pique, parabéns pra você, hip-hurra e os cambaus. A patota toda presente ficou por dentro do assunto. Todo mundo abraçou o Zé Mané e ele espumou de alegria. Não maneirou. Convidou todos pra beber. A moçada não fez cerimônia com 0 otário. Se serviram. De saída, Seu Joaquim abriu duas dúzias de cerveja. E teve muito pilantra que ainda pediu pinga pra quebrar o gelo da cerveja. Sem conferir, o Zé Mané autorizava. Quando o dono do boteco vacilava, o loque berrava: — Hoje é festa, Seu Quim. Bota aí, que não tem chibu. Tou fazendo trinta anos. Com essas e outras, todo o gango se empapuçou. Já tinha nego cercando frango quando um gaiato resolveu tirar sarro com a fuça do dono do boteco. Sabendo que o homem era bronqueado com anedota de português, o pilantroso atacou na ferida: — Escuta aqui, Zé Mané. Tu sabe que falaram pra um cutruco que ele tinha que pagar Imposto de Renda na fonte e o labrego acabou morrendo afogado? A curriola estourou de rir. E conversa puxa conversa. Cada um sacou um esculacho em português. O Seu Joaquim azedou. Como não era homem de comer enrolado e não queria briga, resolveu acabar com a festa. E deu o aviso: — Bom, já é tarde. Eu vou fechar 0 bar. Não sirvo mais nada, que já tão todos de pé queimado. Seu Zé Mané, o senhor que é o dono da conta, me faz favor de acertar e ir contar piada de português em outro canto. Aqui não quero isso. Teve estrilo. Quás-quás-quás grosso. Porém, como era mais de meia-noite, o Zé Mané deu uma pá de cal na festa. Olhou no relógio e acalmou os ânimos: — Acabou a festa. Meu aniversário foi ontem. A patota se conformou. Já iam se mandando quando o Seu Joaquim deu o arrocho: — E a conta? Quem paga? O Zé Mané não balançou pra responder: — Pendura. Não prestou. O Seu Joaquim virou bicho. Já estava invocado com as piadas. Com o devo do Zé Mané, então, se picou de raiva. E deu a prensa: — Não tem papo. Vai pagar já. Pro Zé, que não tinha dinheiro, a novidade valeu por uma paulada. E deu a volta em tom bravo: — Pendura, já falei. Sempre pendurou, por que vai fazer onda agora? Teve início um bate-boca: — Pendurei os sortidos. — E eu sempre paguei. — Mas bebida eu não vendo fiado. — Agora que tu avisa? — Tu já devia saber que não vendo bebida fiado pra vagabundo nenhum. — Vagabundo é a mãe. Xingar a mãe é sempre início de confusão. 0 português passou a mão num cacete, pulou o balcão e cobriu o Zé Mané de pancada. Ninguém se meteu. O Zé, bebum, mal podia com ele mesmo e apanhou coisa que preste. Ficou estarrado no chão quase morto. E só com muito custo impediram o português de mandar o Zé falar com Deus. O Ditinho Preto e os outros companheiros de quarto guindaram o Zé Mané. E a bagunça acabou aí. No dia seguinte, Seu Joaquim estava firme no boteco, atendendo a freguesia, quando o Ditinho Preto se apresentou falando macio: — Seu Joaquim, o Zé Mané tá com vergonha do que aconteceu ontem e pediu pro senhor ir ali na esquina, que ele quer acertar as contas com o senhor. O português entrou no grupo. Até bochichou: — O Zé é bom rapaz. Ontem ele estava bebido. Hoje ele acerta e fica tudo por isso mesmo. Vamos lá. Na esquina, o português encontrou o Zé Mané. Mal viu o loque e manjou qual era o acerto. Quis correr, mas não deu. O Zé Mané meteu uma lapa de faca que não tinha mais tamanho na barriga do Seu Joaquim. O homem ficou embarcado. Mas, antes de morrer, ainda escutou o recado do Zé: — Assim tu aprende a respeitar um pinta que faz aniversário. Plínio Marcos

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O dia em que Urano entrou em Escorpião (Velha história colorida)

Estavam todos mais ou menos em paz quando o rapaz de blusa vermelha entrou agitado e disse que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros três interromperam o que estavam fazendo e ficaram olhando para ele sem dizer nada. Talvez não tivessem entendido direito, ou não quisessem entender. Ou não estivessem dispostos a interromper a leitura, sair da janela nem parar de comer a perna de galinha para prestar atenção em qualquer outra coisa, principalmente se essa coisa fosse Urano entrando em Escorpião, Júpiter saindo de Aquário ou a Lua fora de curso. Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia-noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria alheia ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia. Uma vez renunciado ao sábado, os três ali ouvindo um velho Pink Floyd baixinho para que, como da outra vez, os vizinhos não reclamassem e viessem a polícia e o síndico ameaçando aos berros acabar com aquele antro (eles não gostavam da expressão, mas era assim mesmo que os vizinhos, o síndico e a polícia gritavam, jogando livros de segunda mão e almofadas indianas para todos os lados, como se esperassem encontrar alguma coisa proibida) – renunciando pois ao sábado, e tacitamente estabelecida a paz com o baixo volume do som e a quase nenhuma curiosidade em relação uns aos outros, já que se conheciam há muito tempo, eles não queriam ser sacudidos no seu sossego sábia e modestamente conquistado, desde que a noite anterior revelara carteiras e bolsos vazios. Então olharam vagamente para o rapaz de camisa vermelha parado no meio da sala. E não disseram nada. Aquele que tinha saído da janela fez assim como se estivesse prestando muita atenção na música, e falou que gostava demais daquele trechinho com órgão e violinos, que parecia uma cavalgada medieval. O rapaz de camisa vermelha percebeu que ele estava tentando mudar de assunto e perguntou se por acaso ele já tinha visto alguma vez na vida alguma cavalgada medieval. Ele disse que não, mas que com o órgão e todos aqueles violinos ao fundo ficava imaginando um guerreiro de armadura montado num cavalo branco, correndo contra o vento, assim tipo Távola Redonda, a silhueta de um castelo no alto da colina ao fundo – e o guerreiro era medieval, acentuou, disso tinha certeza. Ia continuar descrevendo a cena, pensou em acrescentar pinheiros, um crepúsculo, talvez um quarto crescente mourisco, quem sabe um lago até, quando a moça com o livro nas mãos tornou a baixar os óculos que erguera para a testa no momento em que o rapaz de camisa vermelha entrou, e leu um trecho assim: Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura. Necessariamente porque o dualismo existencial torna sua situação impossível, um dilema torturante. Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura - loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura. Ernest Becker, A negação da morte Quando ela parou de ler e olhou radiante para os outros, o que tinha saído da janela voltara para a janela, o rapaz de camisa vermelha continuava parado e meio ofegante no meio da sala enquanto o outro olhava para o osso descarnado da perna de galinha. Disse então que não gostava muito de perna, preferia pescoço, e isso era engraçado porque passara por três fases distintas: na infância, só gostava de perna, na casa dele aconteciam brigas medonhas porque eram quatro irmãos e todos gostavam de perna, menos a Valéria, que tinha nojo de galinha; depois, na adolescência, preferia o peito, passara uns cinco ou seis anos comendo só peito e agora adorava pescoço. Os outros pareceram um tanto escandalizados, e ele explicou que o pescoço tinha delícias ocultas, assim mesmo, bem devagar, de-lí-ci-as-o-cul-tas, e nesse momento o disco acabou e as palavras ficaram ressoando meio libidinosas no ar enquanto ele olhava para o osso seco. O rapaz de camisa vermelha aproveitou o silêncio para gritar bem alto que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros pareceram perturbados, menos com a informação e mais com o barulho, e pediram psiu, para ele falar baixo, se não lembrava do que tinha acontecido a última vez. Ele disse que a última vez não interessava, que agora Urano estava entrando em Escorpião, ho-je, falou lentamente, olhos brilhando. Ele estava lá há uns cinco anos, acrescentou, e os outros perguntaram ao mesmo tempo ele-quem-estava-onde? Urano o rapaz de camisa vermelha explicou, na minha Casa oito, a da Morte, vocês não sabem que eu podia morrer? e pareceria aliviado, não fosse toda aquela agitação. Os outros entreolharam-se e a moça com o livro nas mãos começou a contar uma história muito comprida e meio confusa sobre um garoto esquizofrênico que tinha começado bem assim, ela disse, a curtir coisas como alquimia, astrologia, quiromancia, numerologia, que tinha lido não sabia onde (ela lia muito, e quando contava uma história nunca sabia ao certo onde a teria lido, às vezes não sabia sequer se a tinha vivido e não lido). Acabou no Pinel, contou, é assim que começam muitos processos esquizóides. Olhou bem para ele ao dizer processos esquizóides, os outros dois pareceram muito impressionados e tudo, não se sabia bem se porque respeitavam a moça e a consideravam superculta ou apenas porque queriam atemorizar o rapaz de camisa vermelha. De qualquer forma, ficou um silêncio cheio de becos até que um dos outros se moveu da janela para virar o disco. E quando as bolhas de som começaram a estourar no meio da sala todos pareceram mais aliviados, quase contentes outra vez. Foi então que o rapaz de camisa vermelha tirou da bolsa um livro que parecia encadernado por ele mesmo e perguntou se eles entendiam francês. Um dos rapazes jogou o osso de galinha no cinzeiro, como se quisesse dizer violentamente que não, olhando para o que estava na janela, e que já não estava mais na janela, mas sobre o tapete, remexendo nos discos. Parou de repente e olhou para a moça, que hesitou um pouco antes de dizer que entendia mais ou menos, e todos ficaram meio decepcionados. O rapaz de camisa vermelha falou baixinho que não tinha importância, e começou a ler um negócio assim: Laposition de cet astre en secteur situe le lieu ou l’être dégage au maximum son indiuidualitéaans une voie de supersonnalisation, à lafaveur d’un développement d’énergie ou d’une croissance exagerée qui est moins une abondance de force de vie qu’une tension particulière d’enérgie. Ici, l’être tendà affirmer une volontélucide d’independence quipeutie conduire à une expression supérieure et originaledesapersonalité. Dans la dissonance, son exigence conduit à l’insensibilité, à la dureté, à l’excesszf à l’extremisme, au jusqu’au’boutisme, à l’aventure, aux bouleversements. André Barbault, Astrologie Parou de ler e olhou para os outros três devagar, um por um, mas só a moça sorriu, dizendo que não sabia o que era bouleversements. Um dos rapazes lembrou que boulevard era rua, e que portanto devia ser qualquer coisa que tinha a ver com rua, com andar muito na rua. Ficaram dando palpites, um deles começou a procurar um dicionário, o rapaz de blusa vermelha olhava de um para outro sem dizer nada. Depois que todos os livros foram remexidos e o dicionário não apareceu e o outro lado do disco também terminou, ele repetiu separando bem as sílabas e com uma pronúncia que os outros, sem dizer nada, acharam ótima: L’être tendà affirmer une volonté lucide d’independence qui peut le conduire à une expression supérieure et originale de sapersonalité. Então perguntou se os outros entendiam, eles disseram que sim, era parecidinho com português, lucide, por exemplo, e originale, era superfácil. Mas não pareciam entender. Aí os olhos dele ficaram muito brilhantes outra vez, parecia que ia começar a chorar quando de repente, sem que ninguém esperasse, deu um salto em direção à janela gritando que ia se jogar, que ninguém o compreendia, que nada valia mais a pena, que estava de saco cheio e não apostava um puto na merda de futuro. O rapaz de camisa vermelha chegou a colocar uma das pernas sobre o peitoril, abrindo os braços, mas os outros dois o agarraram a tempo e o levaram para o quarto, perguntando muito suavemente o que era aquilo, repetindo que ele estava demais nervoso, e que estava tudo bem, tudo bem. A moça de óculos ficou segurando a mão dele e passando os dedos no seu cabelo enquanto ele chorava, um dos rapazes disse que ia até a cozinha fazer um chá de artemísia ou camomila, a moça falou que cidró é que era bom pra essas coisas, o outro falou que ia colocar aquele disco de música indiana que ele gostava tanto, embora todo mundo achasse chatíssimo, só que precisou botar bem alto para que pudessem ouvir do quarto. O chá veio logo, quente e bom, apareceu um baseado que eles ficaram fumando juntos, um de cada vez, e tudo foi ficando muito harmonioso e calmo até que alguém começou a bater na porta tão forte que pareciam pontapés, não batidas. Era o síndico, pedindo aos berros para baixar o som e falando aquelas coisas desagradáveis de sempre. A moça de óculos disse que sentia muito, mas infelizmente naquela noite não podia baixar o volume do som, não era uma noite como as outras, era muito especial, sentia muito. Tirou os óculos e perguntou se o síndico não sabia que Urano estava entrando em Escorpião. Lá no quarto, o rapaz de blusa vermelha ouviu e deu um sorriso largo antes de adormecer com os outros segurando nas suas mãos. Então sonhou que deslizava suavemente, como se usasse patins, sobre uma superfície dourada e luminosa. Não sabia ao certo se um dos anéis de Saturno ou uma das luas de Júpiter. Talvez Titã. Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Algumas Palavras

Ao ouvir a cela sendo aberta, Seu Mauro soube que tinha sido escolhido, pois ninguém mais tinha motivo para ir em sua cela. Foi levado direto ao laboratório onde ficava a maquina. Todos os movimentos que fez, foram ordenados por alguém. A única decisão que pode tomar foi escolher o dia, a hora e o local em que poderia voltar. Entrou na maquina, fechou os olhos e quando abriu estava na rua onde havia crescido. Ali estava grande parte de suas lembranças. Dona Maria varrendo, os velhinhos jogando baralho, seus amigos de infância jogando bola. Porem nesse dia ele não jogava bola. Estava prestes a cometer seu primeiro erro. Foi o mais rápido que pode em direção a loja de seu Manoel. Olhou para o cronômetro, tinha ainda nove minutos. Encontrou-se sentado em frente à loja. Ele olhava atentamente para dentro, esperando um momento de vacilo do dono. Sentou ao lado de si mesmo. -Se eu fosse você não faria o que esta pensando em fazer. - E o que eu estou pensando em fazer? – Perguntou o menino. - Você rouba seu Manoel, bebe aquele refrigerante que você gosta, come os doces e depois quando acabar? Vai roubar de novo, de novo e não vai parar nunca mais. - Eu não tenho dinheiro pra comprar. - Porque você não tenta arrumar um trabalho. Primeiro você estuda, quando chegar em casa troca de roupa e vai até as casas dos vizinhos, pergunta se eles não querem que varram o quintal, joguem lixo fora. Você vai conseguir um dinheiro e não vai mais precisar roubar. Tem ainda o melhor de tudo. - O que? – perguntou o menino curiosamente. - É você saber que conseguiu comprar alguma coisa com seu próprio dinheiro. O nome disso é independência e você não depender de ninguém, não tem preço. - Porque o senhor está falando essas coisas comigo? Mauro ficou pensativo por alguns segundos. - Porque quando eu tinha sua idade comecei a roubar e não parei nunca mais. Perdi os melhores anos de minha vida na cadeia. Não me casei, não tive família. Dos meus setenta anos de vida, passei mais da metade na cadeia. O menino ficou quieto. Ao longe ele ouviu o grito da mãe chamando-o. Ao contrario da primeira vez, quando não obedeceu o chamado da mãe e consumou o roubo, dessa vez o menino levantou, acenou para Mauro e foi na direção de casa. Mauro olhou para o cronometro, lhe restavam ainda três minutos. Foi na mesma direção que o menino. Queria ver a mãe uma vez mais. Ela estava dando uma bronca. Ela perguntou se ele não tinha noção das coisas. Essa era a frase que sua mãe mais usava e que ainda estava em sua cabeça. Ouvir a mãe dizer aquilo mais uma vez o fez chorar. Começou a sentir seu corpo vibrar, vibrar de tal maneira que começou a doer de dentro para fora. Ele fechou os olhos e quando abriu estava numa sala, sentado em uma cadeira de balanço. Começou a ouvir o som de passos de crianças, derrepente a sala foi invadida por cinco crianças que o abraçaram e o chamaram de Vovô. Julio Pecly

terça-feira, 1 de maio de 2012

Sexta-feira 13

Nunca acreditei em azar. Depois do que me aconteceu na ultima sexta, confesso que vou repensar isso. Como de costume acordei às seis horas da manhã. Não tinha energia elétrica, tive que tomar banho frio. Quando fui tomar meu pingado, o leite estava estragado. Quando fui calçar meu tênis, arrebentou o cadarço e demorei meia hora para encontrar outro e resultado, perdi meu ônibus. Cheguei atrasado ao trabalho, tomei esporro do meu chefe. Na hora do almoço, fiquei engasgado com um osso de galinha. Na parte da tarde para evitar que coisas acontecessem, fiquei quieto no meu canto, trabalhando, adiantando tudo para segunda não ter trabalho acumulado. Quando deu a hora de ir embora, respirei fundo, rezei para São Expedito e fui para o ponto de ônibus. Entrei, passei pela roleta e quando peguei minha carteira para pegar o cartão. A carteira havia sumido. Ao pagar o almoço, estava com a carteira, devo ter perdido depois. O que prova que à tarde também tinha sido azarada. Olhei para o cobrador e contei a minha historia triste. O cara olhou para mim e sorriu: - Tudo bem! Você pega esse ônibus todos os dias. Segunda você me paga. Agradeci ao cobrador, fui pra casa e só levantei da cama a meia noite e um minuto. Já era sábado catorze. Julio Pecly

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os “Achólogos” de plantão

Os “Achólogos” de plantão sempre acham que sabem tudo. - Acho que foi sequestro relâmpago! -Acho que foi embora naquela enchente! - Acho que explodiu junto com um daqueles bueiros de Copacabana! - Acho que tá chifrando ele! - Acho que foi abdução, pois não deixou nenhuma pista sequer. Ou seja ninguém sabia era de coisa alguma. A única coisa que eu sabia, foi que, quando entrei na internet, a mãe da minha namorada havia me mandado um recado perguntando se eu sabia dela, pois ela estava sumida à 24 horas, desde de que saíra de casa para o trabalho, Fiquei preocupado, pois ela não costumava fazer coisas desse tipo. De todas as minhas namoradas, de todas as três que já tive, ela era a mais responsável, estudava, trabalhava e ainda fazia trabalho voluntário em uma creche, como ela conseguia tempo eu nunca descobri. Saí da minha casa e fui para a casa da mãe dela. Quando cheguei lá todos estavam preocupados, os tios “Achólogos” dela faziam as suposições mais loucas possíveis, o que deixava Dona Rita mais preocupada ainda. Às duas horas da tarde ela chegou. Foi logo estranhando a situação. - O que foi gente, o que esta acontecendo? Dona Rita foi a primeira a dar-lhe um abraço. - Onde você estava que não avisou? – Perguntou Dona Rita. - Estava em Petrópolis, na despedida de solteiro de uma amiga de escola e de lá não dava pra ligar. Mas eu avisei onde ia para o papai. Todos olharam para seu Elias, que sorriu sem graça. - Eu esqueci. Todos riram, mas juro que senti no ar uma vontade de algumas pessoas em apertar o pescoço de seu Elias, entre elas minha sogra. Julio Pecly

Cospi Kospi Kospy Cospy ou macro-brócoli

O marinheiro me levou ao banheiro meu primeiro presente,quase prisão, câmeras, contravenção, contra convenção eu levei o marinheiro o marinheirão arteiro não me deixou na mão o marinheiro tatuado parecia machucado antes perguntei: - 20? - 22, perguntou ele: - e você? - eu 25, não melhor 26 falei então, não não melhor ainda farei 27; mentia mas hoje realmente é meu dia ele entendeu e me deu o que eu queria o que eu não queria era conselho de polícia achei divertido a idéia de sair no Diarinho: “Tetsuo - o Takita e O marinheirinho”. Corriqueiro. - Imaginação fértil tem vocês! Falei Sincero cobrador me respondeu: - Mesma porta quatro pés, um sentado o outro em pé frente a frente Oque é? Dava um quadro eu pensei (a sua sinceridade agradecei) o marinheiro Tatuado mais um sonho gozado tetsuo takita