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domingo, 13 de novembro de 2011

Carta ao Zézim

Porto, 22 de dezembro de 1979


Zézim,


cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente. Seguinte, das poucas linhas da tUa carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”. Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso. Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade. Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem. Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida. Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud. É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano. Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente. E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente. Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido. Pausa. Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas.
Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada como estava, na Nova. E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado "Mulher em chamas". Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer. Escrevendo, eu falo pra caralho, não é? Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava pUta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus?. Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar. Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá. Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios. Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de "não me comprometam, não tenho nada a ver com isso". Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noUtro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que "desse certo", caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo.
Let me take you down
cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever


Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.

Me conta da Adélia.

E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Arantes, pra terminar: "Eu quero te ver com saúde I sempre de bom humor I e de boa vontade".

Um beijo do

Caio

PS — Abraço pro Nello. Pra Ana Matos, e Nino também.

Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma idéia toda azul

Um dia o Rei teve uma idéia. Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou com aquela idéia azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com Ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com igual alegria, linda idéia dele toda azul. Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.
Foi acordar tateando a coroa e procurando a idéia, para perceber o perigo. Sozinha no seu sono, solta e tão bonita, a idéia poderia ter chamado a atenção de alguém.
Bastaria esse alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma idéia: Quem jamais saberia que já tinha dono?
Com a idéia escondida debaixo do manto, o Rei voltou para o castelo. Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus aposentos, atravessou salões, Desceu escadas, subiu degraus, até Chegar ao Corredor das Salas do Tempo.
Portas fechadas, e o silêncio.
Que sala escolher?
Diante de cada porta o Rei parava, pensava, e seguia adiante. Até chegar à Sala do Sono.
Abriu. Na sala acolchoada os pés do Rei afundavam até o tornozelo, o olhar se embaraçava em gazes, cortinas e véus pendurados como teias.
Sala de quase escuro, sempre igual. O Rei deitou a idéia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta.
A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.
O tempo correu seus anos. Idéias o Rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais Que mentiam a verdade. Apenas, sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos jardins.
Só os ministros viam a velhice do Rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe que já podia descansar, e o libertaram do manto.
Posta a coroa sobre a almofada, o Rei logo levou a mão à corrente.
Ninguém mais se ocupa de mim - dizia atravessando salões e descendo escadas a caminho das Salas do Tempo - ninguém mais me olha. Agora posso buscar minha Linda idéia e guardá-la só para mim.
Abriu a porta, levantou o cortinado.
Na cama de marfim, a idéia dormia azul como naquele dia.
Como naquele dia, jovem, tão jovem, uma idéia menina. E linda. Mas o Rei não era mais o Rei daquele dia.
Entre ele e a idéia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo parado na Sala do Sono. Seus olhos não viam na idéia a mesma graça. Brincar não queria, nem Rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia.
Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha guardado para a maior tristeza.
Depois baixou o cortinado, e deixando a idéia adormecida, fechou para sempre a porta.

Marina Colasanti

sábado, 10 de setembro de 2011

Nem a rosa, nem o cravo...

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?
Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.
Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.
Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.
Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!


Jorge Amado

sábado, 6 de agosto de 2011

Um plano genial

Joaquim Rebolão estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz inexperiente que também estava no desvio.
Joaquim Rebolão, porém, defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e idéias.
O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente geniais, graça; aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel o torturava.
Naquele dia, o seu grude já estava garantido. Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava necessitando de claque. Mas o nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira um convite para o filho.
À hora marcada, porém, Rebolão, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a cerimônia. Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto:
— Fica firme aqui na porta um momento, porque preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim. Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de ferradura, quando, ao começar o bródio, Rebolão se levanta .e exclama:
— Senhores, em vista da ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. Em nome do Padre e do Espírito Santo!
— E o filho? — perguntou-lhe um dos convivas.
— Está na porta — responde prontamente. E, voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico:
— Entra de uma vez, menino! Não vês que estes senhores te estão chamando?

Barão de Itararé

domingo, 24 de julho de 2011

Tanga

Havia o que se via
e o que não se via: a manhã luminosa
encobria a treva abissal e velha dos espaços.
O mar batia em frente à Farme de Amoedo e ali
na areia a gente mal o ouvia se o ouvia. E era então que ela súbito surgia
rindo entre os cabelos
a raquete na mão
e se movia
ah, como se movia!
E nessa translação nos descobria
suas fases solares:
o ombro
o dorso
a bunda
lunar?
estelar?
a bunda
que (sob uma pétala de azul)
celeste me sorria.

Ferreira Gullar

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A gravata e o peixe

Decidiu enforcar-se com uma gravata.

Chegara em casa cansado e tinha largado o trabalho. Trabalho tão infindo e injusto na indecência do escritório, que não havia outro jeito:

Sairia daquela vida sem nexo, sem poesia, sem sentido. Nada prestava.

Sairia pela gravata que botava todo dia no pescoço para viver. Agora era ela que faria justiça. Sabia da hierarquia da sociedade, logo chegaria o mal da idade, sabia que era um alerta de início da tempestade. A velhice já lhe doía, sem ao menos senti-la de fato. Seria melhor acabar com tudo de uma vez.

Examinou sua gravata, como um agente examinando sua arma. Suas listras eram hipócritas e estúpidas. Era tão tosca que se fosse arma, seria arma de brinquedo.

Enforcado morreria. Mas parecia que seus sonhos já estavam enforcados em conjuntos de elevadores, seqüência de humores artificiais, risadinhas, piadas prontas, misturados à contas e baixa renda.

Seu lar: um apartamento mal mobiliado artificialmente e sem vida. A única vida presente, não era nem a sua, mas a e de um peixinho dourado que ganhara em uma festa infantil do filho de um colega de trabalho. Estava lá, onipresente, largado no canto da sala como móvel que não se usa.

Naquele fatídico dia, largou as chaves em um canto e atirou-se no sofá, afrouxando aquele acessório que no tão próximo instante, seria sua arma. Com o corpo inclinado no canto, observou aquele pingo de vida, deixado no canto. Um aquário de vidro redondo. Por quanto tempo aquele peixe vivia ali com ele? Ele que sentia-se tão sozinho. Como tinha deixado passar tanto tempo sem ao menos tê-lo notado. Ficara ainda mais triste: a água estava turva, mal podia ver que tinha algum ser vivo ali:

— Ei !

Uma voz o chamou. Estava mais louco que imaginava, olhou para o lado, suspeitando ser impressões:

— É...você mesmo!

Agora, verdadeiramente assustado, levantou-se num sobressalto. Esfregando os olhos e ficando sentando, em postura alerta, suava:

— Olá! Tem alguém aí?

Era fato: estava louco. Lembrou-se de um cara na firma que de tanto fazer cópias quis copiar a própria cara, as outras partes e as partes do chefe. Até a ambulância tinha sido chamado para o pobre coitado.

— Sim —- respondeu hesitante e já quase a sair correndo.

— Poxa até que enfim... Será que você tem um minutinho?

— Mas quem está falando?- perguntou indignado, já levantado com a gravata na mão, em punho. Poderia usá-la como arma para salvar a vida.

— Sou eu...seu peixinho!

Agora sim. O mal estava feito, ia para cova ou direto para manicômio. Não mais a gravata, mas a camisa de força o esperava. Calou-se por um momento, rogando para que só tivesse sido um relance de tontura, alguma voz de seu interior, alguém dizendo para não se enforcar...Já ouvira falar de tanta gente que ouvia vozes, a maioria já trabalhando em terreiros mediúnicos ou largadas em hospícios, falando com árvores.

— Olha...eu não fiz nada! Sou uma pessoa normal, pago contas, tenho carro, tenho apartamento. Só estou numa fase ruim. Diga-me que não estou louco!

O peixinho, que até agora tinha uma fina voz, riu o que parecia seu borbulhar:

— Não precisa ter medo. Não sou a voz da consciência. Sou seu peixinho. Ando meio solitário também. Queria que alguém trocasse minha água.

— Trocar minha água...mas o que? — respirou fundo — Olha...Eu sei que estou louco. Estou conversando com meu peixe...mas...

— Você não está louco! Eu existo! Sou um peixe! Preciso falar com você...Agora! Queria que trocasse minha água...não consigo enxergar...Está tudo verde...você é verde ?

O rapaz, com cara mais assustada, estava verde sim, mas de doença. Suava tanto que chegava até a molhar o chão:

— Devo estar sonhando...— dando as costas.

— Veja esta gravata listrada...Ela é azul..porque devia ser azul.

— Ok. Isso é alguma tentativa divina e barata de salvação? Olha, eu não leio livro de auto-ajudas exatamente por isso. Você quer me convencer que tudo tem que ser assim por um poder divino? Esqueça, estou vacinado contra baboseiras.... Aliás...peixinho...nem falarei com você – de um jeito insosso e incrédulo deu as costas para o peixe.

— Mas eu preciso de você!

Adotando uma postura enérgica, gritou:

— PARE! PARE! Não vê que eu quero acabar com minha vida? E você desperdiçando o meu tempo precioso, com papo de cores. Você não precisa de mim! ACABOU! E ainda falo com um peixe no aquário? É mais que sinal de loucura: é evidência.

— Eu só preciso que troque minha água...depois disso..faça o que quiser...Eu até ofereço meu aquário se você desejar se afogar nele...Você não gostaria de se afogar em condições melhores?

O homem, exausto e com olheiras, sucumbiu ao nervosismo e olhou para o aquário.

Dava apenas para ver os olhinhos esbugalhados de clemência do peixinho. A água estava tão turva. Pelo menos, se fosse morrer, que não deixasse o peixinho em condição desmazelada.

— Então...Você vai trocar? - perguntou o peie.

Olhou a gravata, olhou o aquário e decidiu ajudar o animalzinho. Pelo menos, se fosse dar um fim em sua vida, que mostrasse que deixou tudo ajeitado. Já imaginava a vizinha comentando:

- Ele nem se dignou a trocar a água do aquário, imagina se ele ia pagar o aluguel.

- Trocarei. Mas você terá que ficar CALADO, combinado? Não quero escutar animaizinhos me dando conselhos. Eu não estou na Disney.

— Sim. Combinado.

Enquanto o peixinho, morria de vontade de conversar e tentava sobreviver na pia, arfando de lado. O rapaz foi limpando o aquário e aquela trabalheira de tirar a água, limpar o vidro, tirar o lodo, e colocá-la em posição foi se dissipando aquela intenção de suicídio. Como se fosse jogado no ralo. Tirou o excesso de sujeira que acumulado pelo tempo e puro esquecimento. Como ia se matar? O peixinho, olhando com olhos arregalados, suspirava, tentando obter o máximo de vida daquele ambiente...

Do jeito que alcoólicos e viciados tem momentos de clareza, compreendeu. Tirou uma lição de ambiente, de ajuda e obviamente da própria loucura.

. O peixe voltou pro aquário. Agradeceu a gentileza:

— Obrigado!

— Peixes não agradecem.

— Gravatas não são armas! Peixes não são terapeutas. – replicou.

Depois de ter dito isso, o peixinho se calou e volto, o rapaz deixou a gravata em cima da mesa, dando um nó no aquário. E pela vida, acho que o rapaz decidiu ser pescador.


Ana Carolina Rocha

terça-feira, 5 de julho de 2011

Aqueles dois (História de aparente mediocridade e repressão)

Para Rofran Fernandes:
"I announce adhesiveness,
I say it shall be limitless,
unloosen il.
I say you shall yet find the
friend youwere looking for."
(Walt Whitman: So Long!)

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou. Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois. Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam. Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro. Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava. Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia. Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul. Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme. Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido. Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas. Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi. Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma. Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda. Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto. Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender. Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde. Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou. Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras. Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos. Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio. Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A OPINIÃO EM PALÁCIO

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.

- Chamem a Opinião Pública ? ordenou aos serviçais.

Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.

Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:

- Preciso de ti.

A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.

- Vou te obrigar a ter opinião ? disse o Rei, zangado. ? Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

E virando-se para os serviçais:

- Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.

Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 25 de maio de 2011

POEMA DOS OLHOS DA AMADA

Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe dos breus...
Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...
Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas era
Nos olhos teus.
Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.

Vinícius de Moraes

sábado, 14 de maio de 2011

Ondulações no mar de Dirac

A morte se avizinha como uma enorme vaga, deslizando em minha direção com lenta e inexorável majestade. Tento fugir, mesmo sabendo que é inútil.
Parto, e minhas ondulações divergem para o infinito, como ondas apagando as pegadas de viajantes esquecidos.

No dia em que primeiro testamos minha máquina, tomamos muito cuidado para evitar qualquer paradoxo. Fizemos uma cruz de fita isolante no chão de concreto de um laboratório sem janelas, colocamos um relógio despertador nessa marca e trancamos a porta. Uma hora depois retornamos, retiramos o relógio e colocamos a máquina experimental na sala com uma câmara super-8 apoiada nas bobinas. Apontei a câmara para a marca e um dos meus alunos de pós-graduação programou a máquina para enviar a câmara de volta meia hora, permanecer no passado por cinco minutos e depois retornar. Ela partiu e retornou em um piscar de olhos. Quando revelamos o filme, a hora no relógio era meia hora antes de enviarmos a câmara. Havíamos conseguido abrir a porta para o passado. Celebramos com café e champanha.
Agora que sei muito mais sobre o tempo, compreendo nosso erro. Não havíamos pensado em colocar uma câmara na sala com o relógio para fotografar a máquina quando ela chegasse do futuro. Mas o que era óbvio para mim agora não era óbvio então.

Chego, e as ondulações convergem para o instante agora da vastidão do mar infinito.
Para São Francisco, 8 de junho de 1965. Uma brisa quente acaricia a grama cheia de dentes-de-leão, enquanto nuvens brancas e fofas compõem formas estranhas e maravilhosas para nosso entretenimento. Mesmo assim, muito poucas pessoas param para apreciar. Elas correm para cá e para lá, com ar preocupado, acreditando que se parecerem bastante ocupadas, acabarão ficando importantes.
— Eles têm tanta pressa! — observo. Por que não podem parar um pouco, relaxar, curtir o dia?
— Estão presos na ilusão do tempo — responde o Dançarino.
Ele está deitado de costas, soprando uma bolha de sabão, os longos cabelos castanhos tocando-lhe os ombros, numa época em que qualquer cabelo abaixo da orelha seria considerado comprido. Um sopro de brisa carrega a bolha colina abaixo até o vaivém de pedestres. Todos, sem exceção, a ignoram.
— Estão presos à crença de que o que fazem é importante para algum objetivo futuro.
A bolha estoura em uma maleta e o Dançarino sopra outra.
— Você e eu, nós sabemos que isso é uma ilusão. Não existe passado, não existe futuro, apenas o agora, eterno.
Ele estava certo, mais certo do que jamais poderia imaginar. Antigamente, eu também me preocupava e me achava importante. Antigamente, eu era brilhante e ambicioso. Tinha vinte e oito anos e havia feito a maior descoberta do mundo.

Do meu esconderijo eu o vi sair do elevador de serviço. Era magro, quase esquelético, um homem nervoso de cabelos louros e oleosos, que usava uma camiseta branca sem mangas. Olhou para os dois lados do saguão, mas não me viu escondido no depósito de material de limpeza. Estava carregando uma lata de dez litros de gasolina debaixo de cada braço e mais outras duas, uma em cada mão. Colocou três delas no chão e virou a última de cabeça para baixo; depois, atravessou o saguão, espalhando um longo rastro de gasolina. Seu rosto não tinha expressão. Quando começou a esvaziar a segunda lata, achei que já era o bastante. Saí do meu esconderijo, dei-lhe uma pancada na cabeça com uma chave inglesa e chamei a segurança do hotel. Depois, voltei ao depósito e deixei as ondulações do tempo convergirem.
Cheguei a um quarto em chamas, que ardiam bem perto de mim, o calor quase insuportável. Tentei respirar (um grande erro) e apressadamente apertei algumas teclas.

NOTAS SOBRE A TEORIA E A PRÁTICA DAS VIAGENS NO TEMPO:
1) Só é possível viajar para o passado.
2) O objeto transportado retornará exatamente ao tempo e local de partida.
3) Não é possível transportar objetos do passado para o presente.
4) Ações no passado não podem mudar o presente.

Uma vez, tentei retroceder um milhão de anos, ao Cretáceo, para ver os dinossauros. Todos os livros ilustrados sobre o assunto mostram paisagens cheias de dinossauros. Tive que passar três dias vagando por um pântano (com meu terno novo de tweed) para conseguir, se bem que só de relance, dar uma olhada em um dinossauro que não era maior que um cão bassé. O danadinho (um terópode qualquer, não sei exatamente) fugiu rapidamente ao pressentir minha presença. Que decepção!

Meu professor de Matemática Transfinita costumava contar histórias sobre um hotel com um número infinito de quartos. Certo dia todos os quartos estão cheios e chega mais um hóspede. "Não tem problema", diz o gerente do hotel. Ele muda o hóspede do quarto um para o dois, do dois para o três e assim por diante. Pronto! Um quarto vago.
Pouco depois, chega um número infinito de hóspedes. "Não tem problema", repete o inabalável gerente. Muda o hóspede do quarto um para o dois, o do dois para o quatro, o do três para o seis e pronto! Um número infinito de quartos vagos.
É exatamente de acordo com esse princípio que funciona minha máquina do tempo.

Mais uma vez retorno a 1965, o ponto fixo, o atrator estranho de minha trajetória caótica. Em anos de peregrinação conheci uma infinidade de pessoas, mas Daniel Ranien — o Dançarino — foi o único com a cabeça no lugar. Tinha um sorriso fácil e gostoso, uma velha guitarra de segunda mão e uma sabedoria que levei cem vidas para igualar. Conheci-o em bons e maus momentos, em dias de verão com um céu azul que, seríamos capazes de jurar, durariam mil anos, em dias de em que a neve se acumulava em grandes montes. Em tempos mais felizes, colocamos rosas em canos de rifles, nos deitamos nas ruas da cidade no meio de tumultos, e não nos machucamos. Eu estava com ele quando morreu, uma, duas, cem vezes.
O Dançarino morreu em 8 de fevereiro de 1969, depois de um mês de reinado de Richard, o Embusteiro, e seu bobo da corte Spiro, um ano antes de Kent State, Altamont e a guerra secreta no Camboja estrangularem lentamente o verão de sonhos. Morreu, e não havia — não há — nada que eu pudesse — que possa — fazer. A última vez que morreu, arrastei-o a um hospital, onde gritei e discuti até convencê-los a admiti-lo para exames, embora não parecesse ter nada de errado. Com o auxílio de radiografias, arteriogramas e contrastes radioativos, descobriram afinal o aneurisma incipiente que tinha no cérebro. Eles o anestesiaram, rasparam seus belos e longos cabelos castanhos e o operaram, removendo o capilar afetado e costurando as pontas com destreza. Quando a anestesia passou, fiquei sentado ao lado dele no quarto do hospital, segurando-lhe a mão. Seus olhos estavam com olheiras enormes. Agarrou minha mão e ficou olhando, quieto, para o vazio. Quando terminou a hora das visitas, não deixei que me pusessem para fora do quarto. Ele não disse mais nada. Pouco antes do amanhecer, quando o dia já estava clareando, suspirou baixinho e morreu. Não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer.

As viagens no tempo estão sujeitas a duas restrições: a energia deve ser conservada e a causalidade, respeitada. A energia necessária para aparecer no passado é apenas tomada emprestada do mar de Dirac; como as ondulações desse mar se propagam no sentido negativo do eixo dos "t", o transporte só pode ser feito para o passado. A energia é conservada no presente, contanto que o objeto transportado retorne no mesmo instante em que partiu. Para que a causalidade seja respeitada, nada que o objeto transportado fizer no passado pode afetar o presente. Por exemplo: que aconteceria se você viajasse ao passado e matasse seu pai? Quem inventaria a máquina do tempo?
Uma vez, tentei suicidar-me assassinando meu pai antes que conhecesse minha mãe, vinte e três anos antes de meu nascimento. Nada mudou, é claro, e mesmo enquanto eu estava fazendo isso sabia que nada iria mudar. Mas a gente tem que tentar assim mesmo. Se não tentar, como vai ter certeza?

Na vez seguinte, experimentamos mandar um rato para o passado. Ele viajou no mar de Dirac e voltou sem problemas. Depois usamos um rato treinado, que havíamos pedido emprestado ao laboratório de psicologia sem explicar nossos motivos. Antes da pequena viagem, tinha sido ensinado a percorrer um labirinto para pegar um pedaço de bacon. Depois da experiência, chegou ao final do labirinto com a mesma facilidade.
Ainda precisávamos tentar com um ser humano. Ofereci-me como voluntário e não permiti que ninguém me dissuadisse. Experimentando em mim mesmo, podia contornar os regulamentos da Universidade a respeito de cobaias humanas.
O mergulho no mar de energia negativa não me causou nenhuma impressão especial. Em um momento, estava no centro do anel de bobinas de Renselz, observado por um técnico e meus dois alunos de pós-graduação; no momento seguinte, estava sozinho e o relógio havia recuado exatamente uma hora. Sozinho em uma sala trancada, com apenas uma câmara e um relógio por companhia, vivia naquele momento o ponto mais alto de minha vida.
O momento em que conheci o Dançarino foi o ponto mais baixo. Eu estava em Berkeley, em um bar chamado Trishia 's, embebedando-me devagar. Era o que mais fazia na ocasião, encurralado como me sentia entre a onipotência e o desespero. O ano era 1967. Frisco, naquela época (o auge da era dos hippies parecia apropriado, por alguma razão).
Havia uma garota sentada em uma mesa com um grupo da universidade. Fui até lá e me convidei a sentar. Contei-lhe que não existia, que nada no mundo existia, que tudo era criado pelo fato de que eu estava olhando e desapareceria no mar da irrealidade no momento em que eu parasse de olhar. Chamava-se Lisa, e tentou discutir comigo. Os amigos, entediados, foram embora. Pouco depois, Lisa percebeu que eu estava bêbado. Jogou uma nota na mesa e saiu para a noite nevoenta.
Eu a segui. Quando viu que eu a estava seguindo, segurou a bolsa com mais força e saiu correndo.
De repente, ele estava lá, debaixo de um poste de luz. Por um segundo, pensei que fosse uma garota. Tinha olhos azuis e cabelos castanhos que chegavam até os ombros. Vestia uma camisa índia bordada, tinha um medalhão azul e prata no pescoço e carregava nas costas um violão. Era magro, quase um fiapo, e tinha os movimentos de um dançarino ou um mestre de caratê. Mas não me ocorreu sentir medo dele.
Olhou-me dos pés à cabeça e disse:
— Isso não vai resolver o seu problema, você sabe.
Senti vergonha de mim mesmo. Não sabia mais ao certo o que tinha em mente ou por que havia seguido a garota. Fazia anos que fugira da morte pela primeira vez e já começava a pensar os outros como se fossem irreais, pois nada que fizesse poderia afetá-los de forma permanente. Sentia a cabeça girar. Apoiei-me na parede e escorreguei até o chão, onde me sentei. Até que ponto havia chegado!
Ele me levou de volta para o bar, ofereceu-me um suco de laranja com biscoitos e me fez falar. Contei-lhe tudo. Por que não, já que eu poderia desdizer tudo que dissesse, desfazer tudo que fizesse? Mas eu não tinha pressa. Ele escutou tudo, sem dizer nada. Ninguém havia escutado antes a história completa. Não sei explicar o efeito que aquilo teve sobre mim. Passar tantos anos sozinho e depois, ainda que apenas por um momento... aquilo me atingiu com a intensidade de uma dose de LSD. Ainda que apenas por um momento, não estava mais sozinho.
Saímos de braços dados. Meio quarteirão adiante, o Dançarino parou, na entrada de um beco. Estava escuro.
— Há alguma coisa errada ali — disse, em tom preocupado.
Segurei-o.
— Espere. Você não vai querer entrar aí...
Ele se desvencilhou e entrou no beco. Depois de um momento de hesitação, fui atrás.
O beco cheirava a cerveja choca, misturada com lixo e vômito. Meus olhos logo se acostumaram à escuridão.
Lisa estava encolhida em um canto, atrás de latas de lixo. As roupas dela tinham sido cortadas com uma faca e estavam espalhadas pelo chão. Tinha manchas de sangue nas coxas e em um dos braços. Não parecia nos ver. O Dançarino se agachou ao lado dela e disse alguma coisa baixinho. Ela não respondeu. Ele tirou a camisa e a enrolou na moça. Depois, tomou-a nos braços e levantou-a.
— Ajude-me a levá-la para o meu apartamento.
— Apartamento uma ova! É melhor chamarmos a polícia! — disse eu.
— Chamar os porcos? Está maluco? Quer que eles a estuprem também?
Eu tinha me esquecido de que aqueles eram os anos sessenta. Carregamos a moça até o fusca do Dançarino e fomos ao apartamento dele, na Hashbury. No caminho, ele me explicou em voz baixa o que havia acontecido, um lado negro do verão do amor que eu não conhecia, Tinham sido os greasers, afirmou. Eles apareciam em Berkeley porque ouviam dizer que as garotas hippies davam para qualquer um de graça, e ficavam zangados quando encontravam alguma que pensava diferente.
Os ferimentos de Lisa eram quase todos superficiais. O Dançarino lavou a moça, colocou-a na cama e ficou a noite inteira a seu lado, falando, cantarolando e tentando acalmá-la. Dormi em um dos colchões da sala. De manhã, quando acordei, os dois estavam juntos na cama. Lisa dormia tranqüilamente. O Dançarino estava acordado, abraçando-a. Eu estava consciente o bastante para perceber que aquilo era tudo que estava fazendo, abraçá-la, mas mesmo assim senti ciúme, e não sabia bem de qual dos dois.

NOTAS PARA UMA PALESTRA SOBRE VIAGENS NO TEMPO
O início do século XX foi uma época de gigantes do intelecto que talvez jamais venha a ser igualada. Einstein tinha acabado de inventar a teoria a relatividade e Heisenberg e Schrodinger a mecânica quântica, mas ninguém ainda sabia como compatibilizar as duas teorias. Em 1930, outra pessoa abordou o problema. Chamava-se Paul Dirac. Tinha vinte e oito nos de idade. Teve êxito onde os outros haviam falhado.
A teoria de Dirac foi de um sucesso sem precedentes, exceto por um pequeno detalhe. De acordo com a teoria, a energia de uma partícula podia ser positiva ou negativa. Que significava uma partícula com energia negativa? Como alguma coisa podia ter energia negativa? E por que as partículas comuns, de energia positiva, não caíam nesses estados de energia negativa, liberando uma grande energia no processo?
Você e eu poderíamos simplesmente ter postulado que era impossível uma partícula de energia positiva sofrer uma transição para um estado de energia negativa. Entretanto, Dirac não era um homem comum. Era um gênio, o maior físico de sua geração, e tinha uma resposta. Se todos os estados possíveis de energia negativa já estivessem ocupados, uma partícula não poderia cair para um estado de energia negativa. Ahá! Assim, Dirac postulou que o universo inteiro está totalmente preenchido por partículas de energia negativa. Elas nos cercam, nos permeiam, no vácuo do espaço sideral, no centro da Terra, em todos os lugares onde uma partícula pode estar. Um "mar" infinitamente denso de partículas de energia negativa, mar de Dirac.
A teoria de Dirac tinha falhas, mas isso fica para depois.

Uma vez, fui assistir à crucificação. Peguei um jato de Santa Cruz a Tel Aviv e um ônibus de Tel Aviv a Jerusalém. Chegando a uma colina perto da cidade, mergulhei no mar de Dirac.
Estava usando meu terno com colete. Não havia como evitar isso, a não ser que quisesse viajar despido. A terra era surpreendentemente verde e fértil, muito mais do que eu esperava. A colina agora fazia parte de uma fazenda; estava coberta de videiras e oliveiras. Escondi as bobinas atrás de umas pedras e desci até a estrada. Não fui muito longe. Depois de andar uns cinco minutos, cruzei com um grupo de pessoas. Tinham cabelos pretos, eram morenos e usavam túnicas brancas, muito limpas. Seriam romanos? Judeus? Egípcios? Como poderia saber? Falaram comigo, mas não compreendi uma palavra. Depois, dois deles me agarraram, enquanto um terceiro me revistava. Seriam ladrões atrás de dinheiro? Romanos, em busca de algum documento de identidade? Dei-me conta de quão ingênuo havia sido em pensar que poderia arranjar roupas adequadas e me misturar à multidão. Não encontrando nada, o que havia me revistado me deu uma surra e derrubou-me no chão. Enquanto os outros dois me seguravam, sacou uma adaga e cortou os tendões das minhas pernas. Tive a impressão de que estavam sendo misericordiosos, poupando-me a vida. Foram embora rindo e conversando alguma coisa incompreensível.
Minhas pernas não serviam mais para nada. Estava com um braço quebrado. Levei quatro horas para me arrastar de volta à colina, usando o braço bom. As pessoas que passavam faziam questão de me ignorar. Quando cheguei ao esconderijo, precisei de toda a minha força de vontade para apanhar as bobinas de Renselz e enrolá-las no corpo. No momento em que digitei no teclado a combinação de retorno, estava quase inconsciente. Afinal, consegui completar a combinação. As ondas do mar de Dirac convergiram
e eu estava no meu quarto de hotel em Santa Cruz. O teto tinha começado a cair no lugar onde as vigas haviam queimado. Alarmes contra incêndio estavam tocando, mas eu não tinha para onde correr. O quarto estava cheio de fumaça, acre e densa. Tentando não respirar, digitei um código no teclado, para qualquer tempo, para qualquer lugar que não fosse aquele inferno
e eu estava no mesmo quarto de hotel, cinco dias antes. Respirei fundo. A mulher na cama gritou e tentou se cobrir. O homem que estava trepando com ela estava muito ocupado para se importar. De qualquer modo, eles não eram reais. Ignorei-os e escolhi com um pouco mais de cuidado o lugar para onde iria em seguida. De volta a 65, pensei. Digitei a combinação
e estava de pé em um quarto vazio no trigésimo andar de um hotel em construção. Uma lua cheia banhava as silhuetas dos guindastes silenciosos. Experimentei flexionar as pernas. A lembrança da dor estava começando a desaparecer. Era compreensível, pois aquilo nunca havia acontecido. Viajar no tempo. Não é a imortalidade, mas está bem perto.
É impossível mudar o passado, por mais que se tente.
De manhã, explorei o apartamento do Dançarino. Era louquíssimo, um apartamentozinho de terceiro andar a um quarteirão da Haight-Ashbury que havia sido convertido em uma coisa de outro planeta. O chão estava todo coberto de colchões velhos; em cima deles, uma confusão de colchas, travesseiros, cobertores indígenas, animais empalhados. Você tinha que tirar os sapatos antes de entrar; o Dançarino sempre usava sandálias mexicanas de couro, com sola de pneu. Os radiadores de calor, que não funcionavam, tinham sido pintados com tinta fosforescente. As paredes estavam cobertas de cartazes: gravuras de Peter Max, desenhos de Eschers em cores berrantes, poemas de Allen Ginsberg, capas de discos, posters de movimentos pacifistas, um letreiro que dizia "Haight is Love", avisos dos dez mais procurados pelo FBI, arrancados de alguma agência dos Correios, com as fotos de famosos ativistas contra a guerra circuladas com pincel atômico e um enorme símbolo da paz cor-de-rosa. Alguns dos cartazes estavam iluminados com luz negra e brilhavam com cores impossíveis. O ar estava pesado de incenso e do cheiro de palha queimada da maconha. Em um canto, um toca-discos tocava "Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band" interminavelmente. Quando uma cópia do disco ficava muito arranhada, um dos amigos do Dançarino lhe dava outra de presente.
Ele jamais trancava a porta. ("Se alguém estiver a fim de me roubar, tudo bem, provavelmente está mais necessitado do que eu, não é? Tá limpo".) As pessoas apareciam lá a qualquer hora do dia ou da noite.
Deixei o cabelo crescer. O Dançarino, Lisa e eu passamos aquele verão juntos, rindo, tocando violão, fazendo amor, escrevendo poemas idiotas e canções mais idiotas ainda, experimentando drogas. Era a época em que o LSD estava no auge, em que as pessoas ainda não temiam o mundo estranho e lindo que fica do outro lado da realidade. Era uma época em que valia a pena viver. Sabia que era o Dançarino que Lisa amava realmente, e não eu, mas naquele tempo o amor livre estava no ar como o perfume das papoulas, de modo que não tinha importância. Pelo menos, não muito.

NOTAS PARA UMA PALESTRA SOBRE VIAGENS NO TEMPO (continuação)
Depois de postular que todo o espaço estava preenchido por um mar infinitamente denso de partículas de energia negativa, Dirac foi mais além e se perguntou se nós, no universo de energia positiva, poderíamos interagir com esse mar de energia negativa. Que aconteceria, digamos, se você fornecesse energia suficiente a um elétron para retirá-lo do mar de energia negativa? Duas coisas: primeiro, você criaria um elétron aparentemente do nada. Segundo, você deixaria um "buraco" no mar. O buraco, percebeu Dirac, se comportaria como se fosse uma partícula, uma partícula exatamente igual a um elétron, exceto por um detalhe: teria a carga oposta. Mas se o buraco um dia encontrasse um elétron, este cairia de volta no mar de Dirac e tanto o elétron como o buraco desapareceriam em uma grande explosão. O buraco do mar de Dirac foi batizado com o nome de pósitron. Dois anos depois, quando Anderson descobriu o pósitron e confirmou a teoria de Dirac, foi quase um anticlímax.
Durante os cinqüenta anos seguintes, a realidade do mar de Dirac foi quase ignorada pelos físicos. A antimatéria, os buracos do mar, era a parte importante da teoria; o resto não passava de um artifício matemático.
Setenta anos depois, lembrei-me da história que o professor de matemática transfinita me havia contado e combinei-a com a teoria de Dirac. Da mesma forma como seria possível alojar um hóspede a mais em um hotel com um número infinito de quartos, descobri que poderia pedir energia emprestada ao mar de Dirac. Para dizer a mesma coisa de outra forma: aprendi a fazer ondas.
As ondas do mar de Dirac viajam para trás no tempo.

Depois de minha curta expedição, decidimos tentar algo mais ambicioso: mandar alguém para o passado remoto e recolher provas da viagem. Ainda estávamos com medo de modificar o passado, embora os matemáticos assegurassem que o presente não podia ser alterado.
Colocamos filme na câmara e escolhemos cuidadosamente nosso destino.
Em setembro de 1853, um viajante chamado William Hapland e sua família atravessaram a Serra Nevada para chegar à costa da Califórnia. A filha Sarah registrou em um diário que, ao chegarem ao pico de Parker, avistou pela primeira vez o Oceano Pacífico, no exato instante em que o sol tocava o horizonte, "em uma chama de rubra glória". O diário existe até hoje. Não foi difícil nos escondermos com a câmara atrás de umas rochas e filmar a passagem da carroça puxada por bois que conduzia os cansados viajantes.
Nosso segundo alvo foi o grande terremoto de São Francisco, em 1906. De um armazém abandonado que sobreviveria ao tremor (mas não ao incêndio que se seguiu), observamos e filmamos os edifícios desabando e os bombeiros lutando em vão para apagar as centenas de focos. Voltamos ao presente momento antes de o fogo chegar ao armazém.
Os filmes ficaram sensacionais.
Estávamos prontos para contar ao mundo.
Dali a um mês, haveria uma reunião da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, em Santa Cruz. Liguei para o coordenador e consegui que encaixasse no programa uma palestra para mim, como cientista convidado, sem revelar o que havíamos conseguido. Pretendia mostrar os filmes durante a palestra. Eles nos tornariam instantaneamente famosos.
No dia em que o Dançarino morreu, demos uma festa de despedida, apenas Lisa, ele e eu. O Dançarino sabia que estava para morrer; eu tinha contado a ele e ele havia acreditado, não sei bem por quê. A verdade é que sempre acreditava no que eu dizia. Ficamos a noite inteira acordados, tocando o bandolim de segunda mão do Dançarino, pintando nossos corpos com desenhos psicodélicos, jogando Monopólio, fazendo uma centena de coisas tolas e simples cujo único sentido era o fato de que seria a última vez. Por volta das quatro da manhã, quando começava a clarear, fomos até a baía e, nos abraçando para nos aquecermos, começamos uma viagem. O Dançarino tomou uma dose maior, porque ele não iria mesmo voltar. A última coisa que disse foi que não deixássemos nossos sonhos morrerem; ele queria que continuássemos juntos.
Enterramos o Dançarino, por conta da prefeitura, em uma cova de indigente. Eu e Lisa nos separamos três dias depois.
Continuei a manter um contato superficial com Lisa. No final dos anos setenta, ela voltou à universidade, primeiro para um curso de administração de empresas, depois para estudar Direito. Acho que passou algum tempo casada. Todo ano trocávamos cartões de Natal, até que perdi sua pista. Anos mais tarde, recebi uma carta de Lisa. Dizia que finalmente tinha conseguido me perdoar por ter causado a morte de Dan.
Era um dia frio e nevoento de fevereiro, mas eu sabia que podia encontrar calor em 1965. As ondas convergiram.

Perguntas que eu esperava da platéia:
P (professor velho e pretensioso): Parece-me que esse salto temporal que você propõe viola a lei de conservação de massa/energia. Por exemplo: quando um objeto é transportado para o passado, uma certa massa parece desaparecer do presente, em uma clara violação da lei de conservação.
R (eu): Como o retorno ocorre no momento exato da partida, a massa permanece constante.
P: Muito bem, mas que me diz da chegada no passado? Ela não viola a lei de conservação?
R: Não. A energia necessária é extraída do mar de Dirac, pelo mecanismo que explico em detalhes no meu artigo para o Physical Review. Quando o objeto retorna ao "futuro", essa energia é devolvida ao mar.
P (jovem físico, em tom interessado): O princípio de incerteza de Heisenberg não limita o tempo que se pode ficar no passado?
R: Boa pergunta. A resposta é sim, mas como tomamos emprestada uma quantidade infinitesimal de energia de um número infinito de partículas, o tempo gasto no passado pode ser arbitrariamente longo. A única limitação é que você deve deixar o passado um instante antes de partir do presente.
Dali a meia hora, iria apresentar o trabalho que colocaria meu nome ao lado do de Newton, Galileu... e Dirac. Eu tinha vinte e dois anos, a mesma idade em que Dirac anunciou sua teoria. Eu era um incendiado, pronto para atear fogo ao mundo. Estava nervoso, ensaiando a palestra no meu quarto de hotel. Tomei um gole de uma garrafa de Coca-Cola que um dos meus alunos tinha deixado em cima da televisão. Os locutores do jornal da noite não paravam de falar, mas eu não estava prestando atenção.
Jamais dei aquela palestra. O hotel já havia começado a pegar fogo; minha morte já tinha sido decretada. Depois de colocar a gravata, dei uma última olhada no espelho e encaminhei-me para a porta. A maçaneta estava quente. Abri a porta e deparei com uma muralha de fogo. As chamas invadiram meu quarto como um dragão furioso. Cambaleei para trás, olhando fascinado para elas.
Em algum lugar do hotel, alguém gritou, fazendo-me voltar à realidade. Estava no trigésimo andar; não havia saída. Lembrei-me da máquina. Corri para o outro lado do quarto e abri a maleta onde estava a máquina do tempo. Com dedos ágeis e seguros, retirei as bobinas de Renselz e as amarrei no corpo. O carpete já estava em chamas, bloqueando a porta. Prendendo a respiração para não me sufocar, digitei um código no teclado e mergulhei no tempo.
Vivo retornando a esse momento. Quando apertei a última tecla, o ar já estava quase irrespirável de tanta fumaça. Eu devia ter menos de trinta segundos de vida. Com o passar dos anos, esse tempo foi reduzido para menos de dez segundos.
Vivo de tempo emprestado. Acho que todos nós vivemos assim, talvez. Mas eu sei quando e onde meu débito será saldado.
O Dançarino morreu em 9 de fevereiro de 1969. Era dia frio e nevoento. De manhã, ele se queixou de dor de cabeça. Aquilo era estranho, pois o Dançarino nunca sentia dor de cabeça. Decidimos dar uma volta lá fora, no meio do nevoeiro. Foi bonito. Era como se estivéssemos sozinhos em um mundo estranho e informe. Eu já me havia esquecido completamente da dor de cabeça de Dan quando, olhando para o mar de névoa que se estendia desde o parque até a baía, ele caiu. Estava morto antes de a ambulância chegar. Morreu com um sorriso secreto no rosto.
Jamais entendi aquele sorriso. Talvez estivesse sorrindo porque a dor havia desaparecido.
Dois dias depois, Lisa se matou.

Vocês, pessoas comuns, podem mudar o futuro. Podem gerar filhos, escrever romances, fazer abaixo-assinados, inventar máquinas novas, freqüentar coquetéis, concorrer à presidência. Tudo que vocês fazem afeta o futuro. O que eu faço, não. Para mim, é tarde demais. Minhas ações são escritas em água corrente. Como não tenho nenhuma influência sobre o futuro, também não tenho responsabilidades. Não faz diferença o que eu fizer. Nenhuma diferença.
Quando fui para o passado pela primeira vez, fugindo do fogo, tentei de todas as formas mudar o meu destino. Denunciei o incendiário, discuti com o prefeito, cheguei a ir à minha casa e implorar a mim mesmo que não fosse à conferência.
Entretanto, não é assim que o tempo funciona. Não importa o que eu faça, conversar com um governador ou dinamitar o hotel, quando chego àquele momento crítico (o presente, o meu destino, o momento em que fugi), desapareço do lugar em que estou e volto ao quarto do hotel, com o fogo ainda mais próximo. Restam-me menos de dez segundos. Sempre que mergulho no mar de Dirac, tudo que mudei no passado desaparece. Às vezes faço de conta que as mudanças que provoco no passado podem criar novos futuros, embora saiba que isso é impossível. Quando volto ao presente, todas as mudanças são apagadas pelas ondulações da onda convergente, como quem apaga um quadro-negro depois da aula.
Algum dia vou voltar e enfrentar meu destino. Por enquanto, porém, vivo no passado. É uma boa vida, suponho. Você se acostuma com o fato de que nada que fizer terá qualquer efeito sobre o mundo; isso lhe dá uma certa sensação de liberdade. Estive em lugares onde ninguém esteve, vi coisas que ninguém viu. Abandonei a física, é claro. Nada que eu descobrisse sobreviveria àquela noite fatal em Santa Cruz. Talvez algumas pessoas tivessem continuado pelo puro prazer do conhecimento. A mim, porém, falta motivação.
Por outro lado, existem compensações. Sempre que volto ao quarto do hotel, nada mudou, exceto minhas memórias. Tenho novamente vinte e oito anos, estou usando de novo aquele terno com colete, sinto na boca o gosto indefinido de Coca-Cola choca. Cada vez que retorno, gasto um pouquinho de tempo. Um dia, não me restará mais nada.
O Dançarino não morrerá nunca. Não deixarei que isso aconteça. Cada vez que chego àquela última manhã de fevereiro, ao dia em que ele morreu, volto a 1965, àquele dia perfeito de junho. Ele não me conhece, ele nunca me conhece. Mas nós nos encontramos naquela colina, os únicos dispostos a passar o dia sem fazer nada. Ele está deitado de costas, dedilhando preguiçosamente as cordas do violão, soprando bolhas de sabão e olhando as nuvens brancas no céu azul. Daqui a pouco vou apresentá-lo a Lisa. Ela também não vai nos conhecer, mas não há problema. Temos muito tempo.
— Tempo — digo para o Dançarino, deitado no parque da colina. — Temos muito tempo.
—Todo o tempo que existe — concorda ele.


Geoffrey A. Landis

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Tangerine-Girl

De princípio a interessou o nome da aeronave: não "zepelim" nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: "Amigo!, amigo!"— embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de "Tangerine-Girl". Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava á luz da manhã, tinha um brilho acobreadao de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto 0 outro, da janelinha, olhava e dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: "Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M." E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o "Amigo", que é a palavra de passe dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele "Tangerine-Girl". Seria ela? Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: "P.M.", seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer "a hora depois do meio-dia".Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar - e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais "ele" fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:
— Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.

Rachel de Queiroz

sábado, 2 de abril de 2011

Canteiros

Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade
Correm os meus dedos longos em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento
Pode ser até manhã, cedo claro feito dia
mas nada do que me dizem me faz sentir alegria
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza
Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.

Cecília Meireles

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Cego e amigo Gedeão à beira da estrada

— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?

— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.

— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.

Este que passou agora não foi um Ford?

— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.

— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.

É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?

— Não, Cego. Foi uma lambreta.

— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.

Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!

Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este que passou não foi um Mercedinho?

— Não, Cego. Foi o ônibus.

— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.

Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?

— Não. Foi um Volkswagen 1964.

— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?

— Não, Cego, não foi um Candango.

— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.

Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!

— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.

— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?

— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.

— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:

"Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?"

— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" — respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.

Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?

— Não, Cego. Foi um Volkswagen.

— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?" — "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" — perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi... Passou um Aero Willys?

— Não, Cego. Foi um Chevrolet.

— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?

— Não, Cego. Foi um Ford 1956.

Moacyr Scliar

domingo, 30 de janeiro de 2011

TRAVELLING

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco

Ana C.

sebo

O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o "plim" no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.
- Comprei um livro seu não faz muito.
Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...
Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.
- Você leu meu livro? - ele perguntou.
- Li!
Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores novos.
- Não leu - disse ele.
- Li. Li!
Essa obscena compulsão de ser amado.
- Leu todo?
- Todo.
Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.
Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:
- Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:
- Uma beleza!
- Onde é que ele está?
Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.
Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros.
Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Ocupo-me tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.
Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:
- Que livro! Puxa!
Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
- O último. Finalmente.
- O quê?
Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?
No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a idéia de descobrirem
seu cacófato.
- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.
Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
- Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer.
Mas ele me pegou e me estrangulou.
Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites.
Enfim. É o que dá freqüentar sebos.
Sebo.


Luís Fernando Veríssimo