Sejam Bem Vindos - Leiam e comentem os contos - Sua opnião é muito importante.

domingo, 30 de janeiro de 2011

TRAVELLING

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco

Ana C.

sebo

O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o "plim" no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.
- Comprei um livro seu não faz muito.
Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...
Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.
- Você leu meu livro? - ele perguntou.
- Li!
Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores novos.
- Não leu - disse ele.
- Li. Li!
Essa obscena compulsão de ser amado.
- Leu todo?
- Todo.
Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.
Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:
- Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:
- Uma beleza!
- Onde é que ele está?
Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.
Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros.
Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Ocupo-me tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.
Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:
- Que livro! Puxa!
Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
- O último. Finalmente.
- O quê?
Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?
No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a idéia de descobrirem
seu cacófato.
- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.
Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
- Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer.
Mas ele me pegou e me estrangulou.
Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites.
Enfim. É o que dá freqüentar sebos.
Sebo.


Luís Fernando Veríssimo

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Natal de tia Calu

Tia Calu deixara a porta semi-aberta, para não correr a todo instante a receber os rapazes. Maria Augusta, sozinha, não daria conta do recado. Eram salgadinhos de toda sorte, delicados pastéis, empadinhas apimentadas, camarões recheados, canapés de salmão importado, caprichosas invenções do seu reconhecido gênio culinário. Entre os presentes recebidos àquela manhã havia dois vidros grandes de caviar. Seriam a surpresa da noite. Cortava, amassava, picava, colocava, com requintes de decoradora, trabalho amoroso e sutil, em que punha a alma. Naquela noite todos viriam! Pela primeira vez todos estariam em sua casa, na doce festa de Natal.
Soaram passos na sala.
— Vai ver quem chegou, Maria Augusta.
A preta espiou à porta, viu um jovem oficial, de malinha na mão, contemplando risonho a grande árvore, fulgurante de luzes.
— Tem um que eu não conheço. Está fardado.
— Fardado?
Seu rosto subitamente se fechou. Tia Calu, em suas festas, não gostava que eles viessem de uniforme e todos sabiam disso. O uniforme era a lembrança viva do perigo permanente, da ceifadora implacável.
Tia Calu, em silêncio, lavou as mãos à torneira, enxugou-as lentamente.
— Você, meu filho?
— Pois é, tia Calu — disse o rapaz, alegre, ligeiramente constrangido. — Tenho que estar no campo às cinco horas. Vou para Assunção. Posso dormir aqui, depois da festa?
— Claro, seu pirata! — disse tia Calu abrindo-lhe os braços, beijando-o na testa.
E já brincalhona:
— Mas quem não trabalha não come e não dorme. Venha ajudar na cozinha, que está tudo atrasado e às dez horas a Maria Augusta vai-se embora. Tem festa também...
O capitão deixou a malinha a um canto, sacou fora o dólmã, arregaçou as mangas da camisa.
— Assim que eu gosto. Soldado enfrenta o inimigo em qualquer terreno. E se adapta... A capacidade de adaptação é tudo...
— Eh! Eh! Eh! — riu Maria Augusta, feliz. Ela gostava daquela rapaziada porque topava tudo, não tinha orgulho. Onde é que já se viu um capitão cheio de medalhas botar pastel na frigideira e ficar todo salpicado de gordura?
— Eh! Eh! Eh! Essa Dona Calu tem cada idéia! Mas já havia rumor novo na sala.
— Ô de casa! Pode-se entrar?
— Rua! — disse tia Calu aparecendo, os claros dentes abertos num sorriso. — Rua! Isto aqui não é casa da sogra! — Rua! Rua!
Estava com as mãos cheias de pacotinhos, que os dois lhe passavam.
— Vocês são umas crianças! Pra que essa bobagem?
E colocou, numa alegria de mãe feliz, os pacotes junto ao embrulhinho que o capitão auxiliar de cozinha depositara timidamente sobre um móvel.
— Vocês são impossíveis!
— Sabem que hoje não vai faltar ninguém?
— Não diga! — exclamou surpreso um dos recém-chegados.
— Não falta ninguém! O Guilherme chegou hoje do Pará. Já me telefonou. O Oto conseguiu habeas-corpus da família. Prometeu que vem. E até o Mesquita. Ele me telegrafou de Bagé. Conseguiu licença. Deve estar chegando...
E já dona-de-casa:
— Vão se servindo. Uísque tem à bessa.
— Uísque? Com os preços que andam por aí?
— Ora! Pra que é que a tia Calu trabalha? Não é pra vocês? Sobe o preço do uísque eu subo o preço das aulas, ora essa! Eu acompanho a marcha do câmbio...
Voltaram-se os três. Dois braços apontavam na porta, cada um terminando por uma garrafa de uísque. Tia Calu sorriu de novo:
— E depois, nem era preciso. Eu trabalho com um corpo incansável de contrabandistas... Eles não falham nunca!
Abraços e gargalhadas festejaram a aparição dos braços e garrafas.
— Gelo é só buscar lá dentro!
Voltou à cozinha:
— Vai fazer sala, capitão de bobagem. Seus companheiros estão chegando. Aqui você serve só para atrapalhar.
Vozes e exclamações festivas animavam a sala. Duas horas da manhã!
— Um uísque só — pediu o oficial que chegara primeiro.
— Guaraná, capitão. Hoje você é donzela. Também, pra que é que foi aceitar serviço para a manhã de Natal? É guaraná, se quiser. Você tem de voar muitas horas. E não amola, não, que daqui a pouco eu te ponho na cama...
Tia Calu se mirava amorosa nos doze rapazes. Estavam todos! Não faltava nenhum. Uma juventude magnífica, alguns prematuramente graves, alguns melancólicos, a família longe. O Heitor, um dos bravos da campanha na Itália, fumava muito sério, o copo de uísque na mão esquerda. No mundo, só tinha tia Calu. O único irmão perecera num desastre, dois anos antes, nas margens do Guaporé. Subira num avião obsoleto, que ele sabia sem condições de vôo. Dois outros recordavam uma viagem por Mato Grosso, em que o avião caíra. Haviam escapado por milagre. O mecânico desaparecera.
Tia Calu contemplava a sua macacada, como sempre dizia.
— Vocês não podiam respeitar um pouco esta casa? Isto é família, tá bem?
— Ora, tia Calu, não chacoalha — sorna um rapaz moreno, de sobrancelhas espessas.
Estava a contar ao amigo a história de uma garota conhecida em Anápolis.
E continuando, já alto de uísque:
— Você não faz idéia! Nunca vi criatura mais clara, cabelos mais louros! Mas louro natural, entendeu? Uma coisa maravilhosa! Custei a acreditar que fosse goiana. A gente sempre acha que goiano tem de ser índio...
— O Lauro era goiano e parecia alemão — disse tia Calu.
Ouve um silêncio pesado. Rápido. Lauro caíra seis meses antes. O motor falhara. O avião fora descoberto uma semana depois, quatro homens carbonizados em plena floresta. Tia Calu sentiu um arrepio. Ouvia ainda as três descargas em funeral, diante da cripta dos aviadores, no São João Batista. Vinte e oito anos.
(— Estou ficando velho, tia Calu. Parece que vou ficar pra semente...)
Tia Calu ergueu o copo de uísque à altura dos lábios. Sorria para o Capitão Eduardo:
— Está com inveja, hem, seu boboca? É pra você não aceitar vôo em véspera de Natal, tá bem?
O rapaz fez um muxoxo infantil:
— Ora, tia Calu.
— É pra aprender, entendeu? Olha, prova esses camarões... Trabalho de mestre... Duvido que você já tenha comido coisa melhor... Alguém cantarolava na cozinha, procurando mais gelo.
— Pára com essa taquara rachada — ordenou uma voz, ligeiramente engrolada.
Tia Calu se ergueu, dirigiu-se para o interior. Voz tinha o Meira. Estava agora em Pistóia. Tia Calu mordeu os lábios. Meira deixara um filhinho, tinha agora oito anos.
(— O que é que você vai ser quando homem, Vadinho?
— Ué! Aviador, tia Calu!)
Ela já estava na cozinha, um amontoado de bandejas, pratos, panelas, garrafas.
— Puxa! Você não presta nem pra tirar gelo, Simão. Nunca vi cara mais sem jeito! Escorre um pouco de água em cima, que eles se desprendem .
O rapaz olhou-a, atarantado. Tia Calu aproximou-se, em voz baixa:
— Você não tinha arranjado uma colocação no Ministério?
— Falhou, tia Calu.
Ela ficou séria, olhando a testa larga, os olhos ingênuos do moço. Fazendo viagens longas, voando em ferro velho, a mulher esperando bebê. Era o mais imprudente de todos. Na escola, até os instrutores tinham medo de subir com ele. Fora várias vezes censurado, até punido. Adorava os malabarismos no espaço. Ficava possuído, ao subir, de verdadeiro delírio. Dos malucos da turma, dos tidos como malucos, era o único sobrevivente. Por que não tivera ainda a sorte de cair e ficar inutilizado para os vôos, arranjando sinecura numa base qualquer, pegando uma promoção, livrando-a daquela agonia permanente?
— Vai ser menino ou menina?
— Pelo jeito, menina.
— Graças a Deus — disse tia Calu, arrumando uns canapés.
Voltou para a sala com a bandeja. O grupo cantava, agora, um dos sambas do pré-carnaval. Tia Calu parou à porta, contente de ver aquela sadia despreocupação. Eram o seu orgulho, aqueles rapazes. Caíam como pássaros atingidos em bando, por invisíveis caçadores. Tinham filhos, mãe, esposa, irmãs, gente que vivia em terra, sempre de coração pequenino. Voavam sempre, os nervos de aço, a vontade inquebrantável. Pela primeira vez os tinha todos ao mesmo tempo em casa. Rapazes de escol, exemplares raros de coragem, de saúde física, de saúde moral. Era como se fossem filhos. Nunca mãe nenhuma tivera tantos filhos, tantos filhos tão jovens, tão fortes, tão belos. Pena que não estivessem todos como Carlos. Ah! antes estivessem! E o coração apertado, pousou os olhos enternecidos em Carlos. Somente Carlos não cantava. Levava aos lábios um pastel de camarão. Uma entrada profunda no frontal, que lhe deformava a cabeça, garantia que Carlos não voaria mais.
Olhou o relógio de pulso.
— Duas e meia, capitão! Berço! Chega de guaraná! Vai dormir! Quer que eu te chame a que horas?
O rapaz, que cantava também, quis protestar.
— Não tem choro não. Vai dizendo boa-noite, dá um beijo na mamãe, vai dormir.
O capitão se ergueu, obedeceu docilmente. Pouco depois, um a um, o grupo se dispersava.
— Bom Natal, tia Calu.
Quando se viu só — o capitão ressonava. Maria Augusta saíra às dez horas, o apartamento em silêncio — tia Calu olhou a sala. Parecia um campo de batalha. Precisava pôr em ordem tudo aquilo, senão Maria Augusta resmungaria o dia inteiro. Começou a reunir os copos numa bandeja. Treze copos, doze de uísque, um dela, e o de guaraná, do capitão que ressonava. Aproximou-se, na mão a bandeja, ficou a observar-lhe o sono vagamente atormentado. A seguir, voltou e, a bandeja sempre na mão, atulhada de copos, enfrentou o retrato do filho na parede principal da sala, medalhas e citações ao lado. Durante toda a noite passara despercebido. Havia como que um acordo tácito. Tia Calu agora encarava o filho. Depois, os olhos enxutos, agitou a cabeça:
— E pensar que vocês eram setenta e oito, tenente, setenta e oito!

Orígenes Lessa

sábado, 8 de janeiro de 2011

Samba de Breque

Esta história é verdade. Um tio meu vinha subindo a Rua Lopes Quintas, na Gávea -- era noite -- quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro. Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um "anjinho". Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta -- tantos filhos! -- de modo que ao fim de poucos minutos resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo. Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão.
-- Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula...
Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão:
-- Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro...
Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse:
-- Tenho um negocinho para te mostrar...
E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem.
-- Manda lá.
Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte:

Tava feliz
Tinha vindo do trabalho
E ainda tinha tomado
Uma privação de sentidos no boteco ao lado
Que bom que estava o carteado...
O dia ganho
E mais um extra pra família
Resolvi ir para casa
E gozar
A paz do lar
-- Não há maior maravilha!
Mal abro a porta
Dou com uma mesa na sala
A minha mulher sem fala
E no ambiente flores mil
E sobre a mesa
Todo vestido de anjinho
O Manduca meu filhinho
Tinha esticado o pernil.


Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras:

— O meu filhinho
Já durinho
Geladinho!


Vinicius de Moraes