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sábado, 30 de março de 2013

PEQUENA ODE MINERAL

Desordem na alma que se atropela sob esta carne que transparece. Desordem na alma que de ti foge, vaga fumaça que se dispersa, informe nuvem que de ti cresce e cuja face nem reconheces. Tua alma foge como cabelos, cunhas, humores, palavras ditas que não se sabe onde se perdem e impregnam a terra com sua morte. Tua alma escapa como este corpo solto no tempo que nada impede. Procura a ordem que vês na pedra: nada se gasta mas permanece. Essa presença que reconheces não se devora tudo em que cresce. Nem mesmo cresce pois permanece fora do tempo que não a mede, pesado sólido que ao fluido vence, que sempre ao fundo das coisas desce. Procura a ordem desse silêncio que imóvel fala: silêncio puro. De pura espécie, voz de silêncio, mais do que a ausência que as vozes ferem. A MULHER SENTADA Mulher. Mulher e pombos. Mulher entre sonhos. Nuvens nos seus olhos? Nuvens sobre seus cabelos. (A visita espera na sala; a notícia, no telefone; a morte cresce na hora; a primavera, além da janela). Mulher sentada. Tranqüila na sala, como se voasse. IMITAÇÃO DAS ÁGUAS De flanco sobre o lençol, paisagem já tão marinha, a uma onda deitada, na praia, te parecias. Uma onda que parava ou melhor: que se continha; que contivesse um momento seu rumor de folhas líquidas. Uma onda que parava naquela hora precisa em que a pálpebra da onda cai sobre a própria pupila. Uma onda que parava naquela hora precisa em que a pálpebra da onda cai sobre a própria pupila. Uma onda que parava ao dobrar-se, interrompida, que imóvel se interrompesse no alto de sua crista e se fizesse montanha (por horizontal e fixa), mas que ao se fazer montanha continuasse água ainda. Uma onda que guardasse na paria cama, finita, a natureza sem fim do mar de que participa, e em sua imobilidade, que precária se adivinha, o dom de se derramar que as águas faz femininas mais o clima de águas fundas, a intimidade sombria e certo abraçar completo que dos líquidos copias. A MULHER E A CASA Tua sedução é menos de mulher do que de casa; pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas, organizando-se dentro em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la. QUESTÃO DE PONTUAÇÃO Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca); viva em ponto de interrogação (foi filosofia, ora é poesia); viva equilibrando-se entre vírgulas e sem pontuação (na política): o homem só não aceita do homem que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive o inevitável ponto final. João Cabral de Melo Neto