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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

ROSE E O ANJO DA SALVAÇÃO

O sol raiava no meio do mar jogando os primeiros raios de sol sobre as areias da orla do Rio de Janeiro, o Morro do Chapéu Mangueira fica de frente para o mar, uma vista privilegiada do mais caro pedaço da cidade, um lugar onde gente acorda cedo para dar começo no batente, a vida na madrugada também é agitada com o subir e descer de gente da comunidade e de fora dela, motos acelerando morro a cima para o mercado de toxico que mesmo sobre os olhares de uma pacificação policial continua se alimentando do vicio. Afinal como disse certo policial militar uma vez, onde vamos acomodar os viciados, admitindo ele que o estado não tem competência para administrar a peste maligna da sociedade deste começo de século. Os mesmos raios de sol entravam pela janela da casa do pedreiro Gladison que tinha os olhos fitos para Bíblia Sagrada aberta no salmo vinte e três. Em uma das mãos uma bíblia na outra um revolver calibre trinta e oito, carregado. Ele caminha recitando o famoso versículo que muitos evangélicos nem precisam abrir o livro dos livros para ler. - O senhor é meu pastor e nada me faltará. Deita-me faz por verdes pastos; guia-me mansamente a águas tranquilas... Caminha em direção à cama de sua filha, Rose. Uma adolescente de dezesseis anos na flor da tenra idade se veste como uma adolescente do morro, um top cobrindo os seios que lhe brotam no tórax ainda firmes e duros, um short jeans curtíssimo que lhe cobre o restante do corpo. Pequena e morena, vaidosa e frágil, corpo bonito de menina moça, olhos negros, rosto de anjo. Seu pai caminha em direção o corpo da filha estirada na cama. - Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, pois tu estais comigo, tua vara e teu cajado me consolam... Ele chega perto bastante e olha a filha que em sono profundo tema maquiagem do rosto borrado. Na face do pai rola uma lagrima, ele estende a arma em direção ao corpo da linda jovem que nos braços de morfeu não poderá se defender, ele hesita e ato continuo puxa o gatilho, o disparo ecoa pelo morro como se a morte anunciasse sua presença. Na madrugada daquele dia em um beco da comunidade Rose fazia sexo oral em um homem negro que encostado no muro sentia prazer a cada movimento dela, um frenético vai e vem com a cabeça que o homem fica desnorteado com os olhos fechados pedindo para que ela não pare, ela para e continua o exercício com as mãos até que ele explode em um jorro fatal do prazer e delírio. Eles se ajeitam, o homem pega uma pistola que ficou escondida durante o ato em um caco de telha de amianto, junto com a arma um saco de plástico com papelotes com cocaína dentro, pega dois e entrega a menina que coloca dentro dos seios e sai satisfeita pelo beco, anda poucos metros e entra em uma birosca ainda aberto naquela hora. - Seu Manoel o banheiro ta aberto? - Vê se não demora muito porque tem muito policia hoje, toda hora passa um pra pegar alguém de bobeira no bagulho. - Tá tranquilo seu Manuel, pode deixar. Ela já havia consumido uma quantidade grande de papelotes no começo da noite, e na madrugada continuou vendendo o corpo tantas vezes com vários parceiros de diferentes idades que sentia o corpo dolorido, mas continuava para poder sustentar o vicio, estes homens tinha como recompensa algum prazer carnal. Era mais uma vez que com um canudo de papel cheirava o pó sobre uma superfície de mármore colocada pelo dono do bar para a freguesia que entrava e sai do minúsculo banheiro sem ser importunada. O odor do vaso cheio de fezes que chagava a borda, não incomodava, o cheiro da urina que vinha do ralo ao lado da pia, subia sem ter por onde se dissipar transformando o ambiente inconcebível para quem não estivesse sobre efeito de um entorpecente ou varias deles. Ela cheirou os últimos grãos e passou o dedo sobre o mármore para ter certeza que tinha consumido toda a droga, de repente sentiu o coração acelerar bruscamente e uma pontada na cabeça como se fosse começo de uma dor, mas como do nada veio do nada parou, foi muito rápido chegou a apoiar a mão na parede do cubículo por alguns instantes para se recuperar, arrumou a roupa apertada e ajeitou o corpo, abriu a porta apenas uma fresta para ver se tudo estava limpeza, se não tinha nenhum policial por perto, confirmado ela sai do banheiro dos viciados e deixa dois reais para o dono, pedágio cobrado para quem quer dar um teco escondido. Rose estava satisfeita, mas ainda não estava conformada, podia ainda fazer mais um trabalho rápido com alguém e comprar mais um pó de cinco, Flavinho o traficante que ela prometeu fazer um boquete em troca de um papel foi generoso, deu dois, sinal que ele gostou da caprichada que ela deu. Na esquina da rua principal ela começou a se sentir muito estranha, um gosto estranho na boca uma pontada na cabeça como no banheiro, uma dor no peito agonizante, uma ânsia de vomito, uma tonteira inesperada e La se apoia em uma parede e na calçada, com os olhos revirando ela tenta achar alguém caminhando na rua mas não acha, apoia as costa na mesma parede e um liquido branco começa a sair pela boca, overdose. Os olhos parecem que vão sair de orbita e a língua começa a inchar, ela esta fora de si, começa a se debater não consegue se controlar quando todo corpo estremece, não a dor e sim um torpor na alma. Algo acontece e Rose sente o corpo parar e na sua frente uma luz forte surge e dentro dela um homem vestido de branco, ele caminha em sua direção e ajoelha frente a ela, ele é negro. - Quem é você? Ele olha com ternura para ela, coloca a mão em sua cabeça e fecha os olhos, neste instante Rose sente um alivio no corpo cansado de tanto sexo, pelos poros da palma da mão começa a sair um liquido branco limpando seu organismo e aos poucos ela vai se sentindo melhor, a dor de cabeça passa, o coração volta a ter batidas constantes e normaliza, ela olha com mais atenção aquele rosto que se apresenta a sua frente, contempla um olhar firme e profundo da criatura que lhe socorre. - Porque? - Sou Mizael, sinto no seu coração que você não quer mais esta vida, que as correntes do vicio prende sua alma em um desespero profundo enquanto seu espírito se debate pedindo libertação, fui mandado para lhe salvar, sua vida agora pode caminhar sem precisar desta corrente maligna que corroí sua vida que ainda se encontra na puberdade da caminhada, muito embora sua caminhada vá continuar em outro lugar, e não aqui neste miserável lugar. - Você é tão bonito, não sinto mais vontade de comprar um pó, parece que eu estou mais leve, mais feliz, sinto meu corpo mais forte. - Fui escolhido para preparar você para sua última jornada, Rose sua vida muda daqui em diante, minha tarefa foi cumprida vai para casa seu pai a espera. Ela olha a luz envolta de Mizael que aos poucos o cobre até desaparecer por completo, ela levanta-se aos poucos, olha para mãos que estão cheias de liquido branco, olha em volta e encontra uma bica a poucos metros dela, caminha coloca o joelho no chão liga a bica e deixa a água lavar o liquido primeiro de uma mão depois da outra. Caminha alguns instantes e passa pela boca de fumo, olha pessoas comprando e outras vendendo, alguém a reconhece e chama seu nome, ela calmamente vira as costas e vai para casa. Gladison olhava pela janela a madrugada quente e estrelada com uma lua cheia e clara brilhando no céu. Já perdeu a conta de quantas noites deixara sua casa e saia a esmo pela favela para procurar Rose, não tinha mais lágrimas no rosto para chorar o destino da filha, a mãe dela abandonou tudo para viver com outro homem, ele ficou com a missão tortuosa de ver a filha se perder na vida do trafico, a viziança contava para ele as vezes que ela se prostituia para consumir, para ele um nordestino trabalhador pedreiro de profissão, era humilhante esta situação, a dois anos ela começou a se descontrolar, e suas noites viraram um verdadeiro inferno, ele não tem mais controle sobre Rose nem ela sobre o vicio e há alguns meses nasceu uma vontade no seu coração, acabar com esta tortura, terminar com o sofrimento que faz dele o otário da comunidade, o pai babaca que tem a filha puta, a piada dos botecos e comercio local, um homem sem respeito e sem moral. Naquela noite depois que ela saiu inventando que iria na vizinha pedir algo, só para fugir do pai, ele começou a arrumar a mochila de um jeito diferente, sempre fazia isso para ir trabalhar no dia seguinte, mas hoje ele tirou todas as ferramentas que ocupavam espaço e colocou roupas e o dinheiro que sobrou dos roubos da filha para comprar na boca um pó. Abriu a bíblia e começou pedir perdão a Deus. Ele viu Rose subindo as escadarias, saiu da janela e pegou a bíblia mais uma vez, era a derradeira, abriu em salmos e começou a ler. Rose entrou e olhou o pai, seu olhar era meigo. - Ainda acordado meu pai? - Nunca mais dormi você sabe. - Pode deixar isso acaba a partir de hoje pai. - Sim minha filha acaba. Rose deu um beijo na testa do pai que não se moveu, caminhou até a cama e deixou o corpo cair, antes de pegar no sono ela pensava como fez o pai sofrer e chegou a chorar baixinho, pegou no sono, o dia clareava e o sol despontaria no mar, Gladison lia o salmo vinte três, quando o dia amanhecer vai sair pela ultima vez do morro para voltar para sua cidade natal, sem filha, sem esposa e com a honra lavada. Paulo Silva

quinta-feira, 5 de junho de 2014

OS CICLOS

Estive à conversa com o teu verdugo. Um homem pulcro, amável. Disse-me que, por ser eu, podia escolher o modo de partires. Os esquimós, explicou, quando ficam velhos Perdem-se pelos caminhos para que o urso os coma. Outros preferem terapia intensiva, médicos correndo ao redor, tubos, oxigénio e inclusive um pároco aos pés da cama fazendo sinais de hospedeira de bordo. "É inevitável?", perguntei. "Não devia ter vindo até aqui com essa chuva", Respondeu-me. Depois falou do ciclo dos homens, dos aniversários, da dialéctica estéril do futebol, da infância e os seus estrondos imensos cheirando a pneus. "No entanto", disse sorrindo, "as ambulâncias acabam devorando tudo". Então assinei os papéis e perguntei-lhe quando aconteceria... Agora!, disse. Agora tenho nos braços o teu vasilhame regressável. E decido não chorar, não fazer barulho, para que lá no alto possas achar a mão erguida do teu falcoeiro. Fabián Casas

sábado, 22 de março de 2014

Os Miseráveis

‎Vítor nasceu… no Jardim das Margaridas. Erva daninha, nunca teve primavera. Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta. Pés no chão, nunca teve bicicleta. Já Hugo, não nasceu, estreou. Pele branquinha, nunca teve inverno. Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha. Vítor virou ladrão, Hugo salafrário. Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário. Um usava capuz, o outro, gravata. Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata. Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio. Um não tinha amigo: parceiro. O outro, tinha sócio. Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia, enquanto Hugo fazia pose pra revista. O da pólvora apodrece penitente, o da caneta enriquece impunemente. A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente. Sérgio Vaz

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Aqueles dois (História de aparente mediocridade e repressão)

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou. Não chegaram a usar palavras como “especial”, “diferente” ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois. Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de “um deserto de almas”, para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam. II Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro. Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava. Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia. Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia. III Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul. Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme. Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido. Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas. Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual. IV Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi. Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma. Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda. V Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa. No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto. Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender. Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde. Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou. Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras. Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como “relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos. Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio. Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram. Caio Fernando Abreu