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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O espectador

Densa fora aquela noite de lua cheia, daquele outono remoto. Na imensidão do céu, o vazio escuro da abóbada celeste, nenhuma estrela pontilhada ousara romper o véu de treva, apenas o vulto selênico se revelara misterioso e como a aranha, se ocultara em teias tempestuosas. Incomum fora aquela tormenta de raios fulgentes quebrantando no horizonte. O urro do trovão se ouvira cada vez mais próximo, o som do martelo celeste tremeluzira minha bebida, que me confortara no acampamento em noites gélidas.
Da minha altivez, eu admirara meus domínios, mero pântano no limiar da civilização, que com bravura e labor transmutaria em viçosa terra. Meus homens me seguiram e juntos, realizara meu sonho, tornara-me meu próprio senhor. Nós erguêramos uma capela e celebráramos culto, sem um sacerdote eu mesmo rezara o que sabia de cor. Construíramos palhoças, dormíramos ao relento, até que o rio fora desviado e o charco drenado. Com determinação, de maneira mágica o torreão fora erguido, em um tempo que se julgara impossível na época.
Anos se passaram e as palhoças viraram casas. A vida florescia como fungos no inverno. O terreno úmido não nos deixava esquecer de aquela era uma região inóspita mantida a muito custo pelos esforços de todos: homens, mulheres, crianças e animais. Bestas monstruosas eventualmente emergiam das matas e com fúria irracional ameaçavam nossa tranqüilidade. Apesar do aço fazer o sangue das feras se espalhar pelos ermos e sofrermos poucas baixas, a fama de local hostil se espalhava pela região, o que tornava rara a vinda de mercadores. Em poucos anos, quando percebi, nosso lar era reduto de exploradores: aventureiros ávidos por fama e fortuna, que diziam existir nas profundezas da floresta que nos cercava.
Cansado e sem nenhum homem de fé para me confortar, não me sentia feliz com o meu legado. Nossa cidade se degenerava como fruta madura ao sol. Homem indignos se ocultavam em quartos alugados. Criminosos perigosos, escravos fugidos, viajantes de lugares remotos eram agora necessários para nossa existência, pois deles vinham as notícias de um mundo exterior – cada vez mais estranho para nós – e junto, o vil metal, que pelas taxas que eu cobrava, abasteciam o tesouro. As mulheres ofereciam os corpos aos visitantes, umas por dinheiro, outras por insumos, algumas apenas por raiva dos maridos. Ante a pobreza, muitos dos homens não relutavam em oferecerem as próprias mulheres e filhas para os viajantes, que se lambuzavam com aquele banquete farto e barato.
Ante o assombro que acometia a cidade, decidi, por bem, proibir o comércio das mulheres, muitos homens já estavam se tornando muito poderosos e influentes. Passavam a atrair seguidores e soldados. Dos três homens que controlavam o comércio de mulheres, ordenei a morte de dois, por enforcamento. Deixei apenas a mim mesmo com vida. Tomei as rédeas da cidade e após anos de passividade agi como um senhor, impondo a minha vontade aos servos para o bem de todos.
Entreguei a cabeça de um conspirador do ducado vizinho que se refugiava nas minhas vilas. Recebi soma considerável em ouro pelo favor prestado. Todos os demais facínoras foragidos se sentiram encurralados em um mortal beco sem saída. Impondo o meu terror, os marginais se tornaram submissos e manipuláveis. Quando um grupo deles me trouxe a cabeça do duque, ao qual eu tinha entregue o conspirador, os homens vis se sentiram vingados e perceberam a minha real intenção. Agora eles me eram fiéis. Com o controle dos homens parti – como há décadas não fazia – para a negra floresta, que nos assolava desde de nossa fundação. Um a um os covis desprevenidos dos monstros eram esmagados, ante minhas palavra de poder e aos ataques dos meus lacaios. Os monstros logo entenderam que o medo me consumiu, mas eu não sucumbi, me tornei terror, vingador inquebrantável.
Sem reféns, nem sobreviventes, deixava os meus rastros. As criaturas matavam porque se alegravam, matavam porque se alimentavam, eu não tinha porquês. Este erro inicial fomentou aos monstros uma união rara contra mim e marcharam sobre minha terra. Contudo, tal retaliação me foi útil. Os monstros não sabiam a diferença entre nós humanos e por muitas vezes atacaram os exércitos do filho do duque, que buscava vingança pela minha loucura. Ele julgava que eu controlava os monstros, que atacavam-lhe as tropas e por medo de um destino pior, recuou na vendeta. Me foram enviados mensageiros de paz, mas não tive como fazer sensata escolha. Os exércitos do ducado e as hordas de monstros se enfrentavam ferozmente e a minha posição defensiva me dava vantagem, podia batalhar de modo ambíguo e manter minha cidade de pé. Com esta inesperada proposta de trégua, não poderia mais manter meu estratagema dúbio. Matei um dos mensageiros dele e nada disse ao que retornou. Me restou aguardar as conseqüências de minha inconseqüência.
Os dias se seguiam apreensivos. As tropas do ducado recuavam, até sumirem das minhas fronteiras. Soube que o jovem duque temente, não atacaria. Supus que ele esperava um contra-golpe e ficou defensivo, na segurança do próprio castelo. Superestimei um fraco infante. Já os monstros, ocultos nas florestas, sentiram o cheiro do meu enfraquecimento e organizaram o confronto derradeiro.
Protegidos pelos muros, vi os facínoras atearem fogo nas plantações. Logo depois, contaminaram o nosso suprimento de água com cadáveres doentes. Eles sombriamente esperavam nosso perecimento, e para nosso infortúnio, também lançavam ataques contra as nossas muralhas. Antes que derrubassem nossas defesas e ateassem fogo na minha cidade, organizei os melhores batalhadores e saímos do cerco para uma batalha campal ao sol do verão. Lutamos com destemor e infligimos sofrimento ao confiante inimigo. Antes do cair da noite, fui ferido entre algumas formulações antigas, o ferimento foi profundo e grave. Levado para o torreão, não vi o desfecho da batalha. Na minha agonia só pensava em ficar na minha cidade, que com tanto amor e labor a qualquer preço defendi, por tantos anos. Na minha dor profunda e amargura, desfaleci em torpor.
Ao acordar, vi sombras na noite clara de verão adentrando a porta violada. As grotescas criaturas, com clavas e lanças ocupavam o meu quarto. Se aproximaram do meu corpo e golpearam com desprezo, riam sarcásticas do meu estado putrefato. Fui mero espectador da cena, vendo meu corpo ser lentamente mutilado e o sangue negro esvaindo-se das minhas chagas. Só então percebi que contemplava externamente aquele cenário e via meu próprio rosto cadavérico e sujo, maltratado pelas feras. Minha consciência flutuava etérea próxima do meu corpo mutilado. Emiti um lamento inominável, ante o meu crepúsculo.
Abro os olhos e vejo os monstros me fitarem com pavor. Um súbito e seco golpe de maça sobre minha caixa torácica fez pus jorrar na assustada criatura. Levantei-me do meu leito, e olhei as minhas cadavéricas mãos. Observei a sala com cuidado, vendo os brutamontes vacilantes. Senti fome, mas não por comida, fome por algo abstrato, fome insubstancial. Minhas mãos se lançaram sobre um dos inimigos e esganei a musculosa criatura, meus dedos secavam a pele rugosa do pescoço do monstro que grunhiu em desespero. Quando o lancei ao chão, estava seco como as folhas de verão.
Me senti mais forte e ágil, os outros contendores, que tomados pela ira, lançavam-se sobre mim em vão. Minhas mãos lentamente rasgava a pele frágil deles, produzindo em mim sensações de prazer e neles incômodos ferimentos, dando-lhes falsas esperanças de vitória. Decidido a acabar com a batalha, da minha palma projetei raios. O som do trovão ecoou a torre , um súbito silêncio se seguiu. Ao lado dos corpos dos monstros, vi meu velho corpo destroçado, que por um instante , achei ter se levantado. Olhei as minhas mãos frias e elas ainda estavam lá, me ajoelhei numa pequena poça de sangue e sob a luz da lua cheia de verão pude ver meu rosto espectral, marcado com todas as seqüelas e horrores que vivi. Ordenei que o monstro que esganei, se erguesse e matasse todos da minha torre. Me levantei e deslizei até a janela do torreão. Olhei do alto para a minha cidade arruinada e jurei que protegeria meu domínio de quem quer que fosse, pelo tempo que a eternidade me concedesse.
Ela se tornaria muito mais bela sob a escuridão dos meus novos olhos

DANIELFO

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